quarta-feira, 17 de julho de 2013

Boff: As multidões nas ruas: como interpretar?

As multidões nas ruas, segundo Leonardo Boff representam a fome não só de pão, mas de beleza (educação cultura e de participação). A democracia participativa é aclamada pelas multidões e esse movimento pode representar  um salto civilizatório que definirá a História não só do Brasil, mas de toda a humanidade.

29 de junho de 2013
As MULTIDÕES NAS RUAS: como interpretar? 
BOFF

"O fundamental é que a vida brasileira possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao
público brasileiro… Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira”, escreve Leonardo
Boff, teólogo, filósofo e escritor, citando Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes,
autores de "Gota d'Água".
Segundo ele, "esta tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas ruas. Esse Brasil
que temos não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte
de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir
para uma refundação do país, sobre outras bases mais democrático-participativas, mais
éticas e com formas menos malvadas de relação social".
Eis o artigo.
Um espírito de insurreição de massas humanas está varrendo o mundo todo, ocupando o
único espaço que lhes restou: as ruas e as praças. O movimento está apenas começando:
primeiro no norte da África, depois na Espanha com os "indignados”, na Inglaterra e nos
USA com os "occupies” e no Brasil com a juventude e outros movimentos sociais. Ninguém
se reporta às clássicas bandeiras do socialismo, das esquerdas, de algum partido libertador
ou da revolução. Todas estas propostas ou se esgotaram ou não oferecem o fascínio
suficiente para mover as massas. Agora, são temas ligados à vida concreta do cidadão:
democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais e sociais,
presença ativa das mulheres, transparência na coisa pública, clara rejeição a todo tipo de
corrupção, um novo mundo possível e necessário. Ninguém se sente representado pelos
poderes instituídos que geraram um mundo político palaciano, de costas para o povo ou
manipulando diretamente os cidadãos.
Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão
pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de inteligência, dados
não racionais, emocionais e arquetípicos e emergências, próprias do processo histórico e
mesmo da cosmogênese. Só assim teremos um quadro mais ou menos abrangente que
faça justiça à singularidade do fenômeno.
Antes de qualquer coisa, importa reconhecer que é o primeiro grande evento, fruto de uma
nova fase da comunicação humana, esta totalmente aberta, de uma democracia em grau
zero que se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, dizer
sua palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular uma
bandeira e sair à rua. De repende, formam-se redes de redes que movimentam milhares
de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno precisa ser analisado de forma acurada porque pode representar um salto civilizatório que definirá um
rumo novo à história, não só de um país; mas, de toda a humanidade. As manifestações
do Brasil provocaram manifestações de solidariedade em dezenas e dezenas de outras
cidades no mundo, especialmente na Europa. De repente o Brasil não é mais só dos
brasileiros. É uma porção da humanidade que se identifica como espécie, numa mesma
Casa Comum, ao redor de causas coletivas e universais.
Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões.
Atenho-me apenas a uma. E voltarei a outras em outra ocasião.
Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de
saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil,
inclusive pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT que ainda guardam
o antigo fervor popular). O povo se beneficiou dos programas da Bolsa família, da luz
para todos, da minha casa minha vida, do crédito consignado; ingressou na sociedade de
consumo. E agora o quê? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: "o ser humano
possui duas fomes: uma de pão que é saciável; e outra de beleza que é insaciável”. Sobre
beleza se entende educação, cultura, reconhecimento da dignidade humana e dos direitos
pessoais e sociais como saúde com qualidade mínima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder publico seja do PT ou
de outros partidos. Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, não
em último lugar, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas
desigualdades sociais que é o grande estigma da sociedade brasileira. Esse fenômeno se
torna mais e mais intolerável na medida em que cresce a consciência de cidadania e de
democracia real. Uma democracia em sociedades profundamente desiguais como a nossa,
é meramente formal, praticada apenas no ato de votar (que no fundo é o poder escolher
o seu "ditador” a cada quatro anos, porque o candidato uma vez eleito, dá as costas ao
povo e pratica a política palaciana dos partidos). Ela se mostra como uma farsa coletiva.
Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões
dos grandes projetos que as afetam e que não são consultadas para nada. Nem falemos
dos indígenas cujas terras são sequestradas para o agronegócio ou para a indústria das
hidrelétricas.
Esse fato das multidões nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de
Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975: "A Gota d’água”. Atingiu-se agora a gota
d’água que fez transbordar o copo. Os autores de alguma forma intuíram o atual fenômeno
ao dizerem no prefácio da peça em forma de livro: "O fundamental é que a vida brasileira
possa, novamente, ser devolvida, nos palcos, ao público brasileiro… Nossa tragédia é uma
tragédia da vida brasileira”. Ora, esta tragédia é denunciada pelas massas que gritam nas
ruas. Esse Brasil que temos não é para nós; ele não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte de leão para as elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta
e quer contribuir para uma refundação do país, sobre outras bases mais democráticoparticipativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação social.
Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser
outra daqui para frente

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