sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Como radicalizar a democratização?

09.08.2013


[ Brasil ]

Como radicalizar a democratização?
Adital

Vivemos um perigoso momento em que, por um lado, a legalidade formal

e, por outro, o poder real das grandes corporações econômico-financeiras

asfixiam a democracia e tomam a primazia sobre a legitimidade instituinte e

constituinte da luta cidadã, da cidadania ativa que brota da sociedade civil

No Brasil e na região, de diferentes formas, está perdendo força a onda

democratizadora das últimas três décadas, que varreu as ditaduras. Não estamos

mais no período da democracia criativa, instaurada a partir dos anos 1980, quando as

contradições e disputas políticas levaram a inegáveis conquistas de direitos e práticas

democráticas em detrimento de uma cultura dominante autoritária e excludente.

Agora, estamos entrando em um período de democracias de baixa intensidade política,

ritualizadas e com visível perda de substância democratizadora – aquela força que

emana da incorporação participativa na política dos dominados, vivendo a desigualdade

e a exclusão social como sujeitos cidadãos, detentores de direitos. Entramos em um

processo de mais tensões do que avanços, de democracia cerceada pelos velhos

autoritarismos e populismos, sem poder transformador das estruturas existentes,

contentando-nos com políticas distributivas, importantes e necessárias, sem dúvida,

mas subordinadas ao objetivo de promover o crescimento econômico a todo custo. O

novo desenvolvimentismo, colocado acima da própria democracia, paira como ameaça

tanto em termos de justiça social e direitos humanos como de gestão sustentável dos

territórios.

Vivemos um perigoso momento em que, por um lado, a legalidade formal – ou, pior,

a judicialização da política pela interpretação da lei por tribunais – e, por outro, o

poder real das grandes corporações econômico-financeiras asfixiam a democracia e

tomam a primazia sobre a legitimidade instituinte e constituinte da luta cidadã, da

cidadania ativa que brota da sociedade civil. Estamos encurralados como cidadania.

Temos vitórias a celebrar, olhando para trás, mas precisamos voltar a nos mobilizar

e pressionar. Só assim, empurrada pela cidadania, a democracia poderá exercer

seu papel. Mas, como cidadãos e cidadãs, por onde recomeçar o sonho democrático

mobilizador de enormes energias coletivas? Eis o desafio para inverter esse quadro

político que limita o poder transformador de nossas conquistas de cidadania. Em vez

de sobressaltos provocados por forças reacionárias e autoritárias de um capitalismo

revigorado entre nós, voltemos a tensionar a democracia para que ela seja ainda mais

democrática.
A radicalização da democracia pela cidadania ativa como estratégia

Aqui cabe explicitar, antes de tudo, alguns pressupostos e fundamentos da reflexão

que faço sobre a cidadania e a questão democrática. A democratização, em sua

dimensão mais radical e substantiva, é a equalização pela ação política das assimetrias

e desigualdades existentes na sociedade. Aí reside seu potencial transformador.

Trata-se de um método de ação política, de disputa entre forças diferentes e até

opostas, mais do que seu resultado. Ou melhor, na democracia os fins são buscados,

alcançados e qualificados pelo método democrático de luta, gerador de um processo

de construção coletiva resultado da luta e de negociação permanentes, de perdas e

ganhos relativos para todos, nunca definitivos. Democracia não é uma questão de

eficiência e resultados, mas de quanto é legítimo o processo de chegar a eles.

Apostar na democratização é apostar no processo virtuoso gerado pela radicalização

do método de luta democrática, que transforma as diferentes lutas sociais de forças

destrutivas umas das outras em forças de construção do possível, na diferença e

oposição, num momento histórico dado. Não se trata de pasteurizar as lutas sociais.

Pelo contrário, deve-se buscar extrair de suas contradições os avanços possíveis

em termos de direitos e democratização. Nas lutas, os diferentes sujeitos coletivos

se reconhecem e legitimam, segundo princípios, valores, direitos e regras comuns,

mediados pelo poder político institucional, como expressões de cidadania. Num

pacto de permanentes incertezas criativas, o próprio poder político se renova como

correlação de forças em tal disputa. Emerge daí o próprio projeto de sociedade,

a direção que se quer perseguir democraticamente. Adéquam-se as leis e a

institucionalidade do Estado, formulam-se as políticas públicas e se alocam os recursos

para colocá-las em prática.

Todas as relações na sociedade exprimem em graus e formas variadas relações de

poder. Trazer os sujeitos coletivos que vivem tais relações para a arena política,

segundo regras democráticas, com direito às suas identidades, vozes e demandas

reconhecidas uns nos outros, é a condição para sua plena cidadania. Estando em

disputa permanente, a democracia adquire força transformadora quando é tensionada

por forças que emergem do seio da sociedade civil para que se torne mais inclusiva

e participativa da múltipla diversidade que carregamos. Implica sempre mais

participação, confundindo-se com participação cidadã. A qualidade dessa participação,

expressa na abrangência da diversidade dos sujeitos participantes e na radicalidade

construtiva de disputas entre eles, define, em última análise, a qualidade da própria

democracia.

As mudanças fundamentais na sociedade precisam sempre ocorrer no Estado/poder

político ou na economia/mercado ou, ainda, nos dois ao mesmo tempo, como nos

lembra Gramsci. Mas nem o Estado nem a economia, per se, puxam a democratização.

Na democracia, a força instituinte e constituinte dos processos que empurram e

transformam o Estado e a economia provém da sociedade civil, por meio da cidadania

ativa.

Concebo o "estado” da cidadania ativa como o nível histórico em que iguais direitos

são referência para todos os membros da coletividade, sem discriminações em razão

de sua origem, situação e condição. Direitos e responsabilidades cidadãs de todos

são os dois lados dessa relação política de igualdade, como relação compartilhada

politicamente. Se não é assim, onde a existência de um direito implica sua negação

para os demais, tais direitos deixam de ser direitos de cidadania e viram privilégios

baseados no maior poder de quem se considera seu titular. Aliás, no Brasil, dada nossa

profunda cultura autoritária e patrimonialista, particularmente vinda dos "donos de

terras, gado e gente”, que molda profundamente o poder estatal, ele mesmo violento

e excludente, ainda nos defrontamos quase diariamente com privilégios tornados

direitos, porque estão em leis (ilegítimas, diga-se de passagem, mas leis existentes) ou

mesmo acima delas.

A cidadania é o direito fundamental de todos a ter direitos, sem distinção. Reconhecerse

e agir como cidadão implica ver a si mesmo como titular de direitos e reconhecer a

mesma condição em todos os demais, o que exige corresponsabilidade, balizada pelos

princípios e valores éticos da liberdade, da igualdade, da diversidade, da solidariedade

e da participação, que são o cimento social agregador possível de uma democracia

substantiva, hoje em dia.

O lócus por excelência da cidadania é a sociedade civil. Tomo a sociedade civil em seu

sentido sociológico e político de esfera constitutiva da vida social, entre o mercado/

economia e o Estado/poder. Esfera em que as contradições embutidas nas relações,

estruturas e processos das sociedades se expressam na forma de competição, disputa

e conflito entre diversos sujeitos coletivos, por meio de suas associações, organizações,

movimentos, instituições e aparatos de hegemonia, como mídia, igrejas, universidades.

São portadores de interesses, ideias, valores, crenças e propostas, que os levam a

disputas, pactos e acordos buscando a hegemonia. Portanto, sociedade civil é um

modo de ser, um espaço público, mais ou menos desenvolvido dependendo das

condições históricas de cada sociedade concreta. Não é boa nem ruim, mas a possível

historicamente, fruto de processos e lutas no interior da sociedade considerada. O

que caracteriza as sociedades civis históricas é o estado da cidadania, não o contrário.

Como, por extensão, é também a cidadania que define a qualidade do poder estatal e

do desenvolvimento econômico. Maior ou menor alargamento do espaço da cidadania

é, antes de mais nada, um alargamento do espaço público que conforma a sociedade

civil, prenhe de contradições, encontros e desencontros, de tensões e lutas.

As sociedades civis se expandem e se fortalecem por força da ação e da participação

cidadã, como "trincheiras socais” de resistência e ação, na expressão de Gramsci,

articulando-se em redes, coalizões, plataformas e fóruns, sempre para incidir no espaço

público, seja no debate, no imaginário social e cultural, na definição de agendas, seja

nas instâncias do poder, nas políticas públicas e na ação de empresas e na operação

dos mercados, como condicionante socioambiental. Disso resultam uma visão de

interesse público e bem comum, as "ondas” de opinião pública e de democratização,

os projetos de sociedade que alimentam os movimentos de cidadania nos diferentes

contextos históricos de sociedades concretas.
As lutas da cidadania ativa, a partir de seus territórios, podem ser

portadoras de nova onda democratizadora

Voltando ao ponto de partida, minha premissa é que as indignações e as

insurgências socioambientais de hoje, Brasil afora, pela diversidade de situações,

de sujeitos coletivos e de expressões no espaço público da sociedade civil têm

potencial emancipatório e construtivo de uma nova onda democratizadora. As lutas

socioambientais trazem ao centro da arena política o desafio maior para a jovem

democracia brasileira. A democratização não vai avançar na construção de uma

sociedade de inclusão sem discriminações, de sustentabilidade da vida e preservação

da natureza, de bem viver, se não forem gestadas as condições políticas para uma

transição democrática transformadora do modelo de desenvolvimento econômico

industrial-produtivista e consumista, socialmente concentrador, excludente e

ambientalmente destruidor.

As lutas socioambientais emergem de territórios concretos em que vivemos, nosso

endereço de cidadania. Os territórios não são espaços físicos em si, mas espaços

geográficos dinâmicos, com história humana passada e história em construção pela

ação atual. O uso humano do território qualifica sua organização e lhe dá sentido

histórico. Estamos diante do modo de ocupar e usar o espaço natural, de organizálo

enquanto território humano, de vida em movimento. A relação com a natureza,

como condição do próprio viver, é de dependência e troca. As formas dessa relação

são diversas, tanto porque a biosfera e as condições naturais variam de um lugar a

outro como porque nós mesmos, criadores de cultura, de relações e estruturas, de

economias e de poder somos muito diversos em nossa comum humanidade de sujeitos

cidadãos e cidadãs. Os territórios, como territórios de cidadania, exprimem essa

diversidade resultante da simbiose de seres humanos com a natureza e entre si, que se

renova historicamente.

Voltar a nos olhar como parte dos territórios, como nosso locus fundamental de

existência, com suas possibilidades e limites, seus conflitos e sua história, é um

caminho para refazer e reconstruir a relação sociedade-natureza de forma sustentável,

de respeito mútuo, de trocas vitais que reproduzem e regeneram, sem destruir. É

caminho também a relação da cidadania com o poder e a economia, em uma onda

democratizadora que promova os direitos de todos antes e acima da acumulação

capitalista predatória.

Os impasses da democracia brasileira são o outro lado do novo desenvolvimentismo

como prioridade, que transforma os territórios da cidadania em territórios a serem

ocupados segundo uma lógica de negócio e de acumulação de riquezas sem limites. O

capital que se investe num território determinado, quase sempre com suporte do poder

governamental, faz parte de uma estratégia de desenvolvimento que é determinada,

em última análise, pela taxa de sua valorização. Com isso, é forçoso reconhecer, de

um ponto de vista cidadão, que estamos diante de uma reinvenção de colonialismo,

em que a ocupação dos territórios não é para produzir bens e serviços e servir à vida

da população aí existente, respeitando suas condições e seus direitos de cidadania.

Para as grandes corporações econômicas e financeiras, os territórios não passam

de um diferencial para seus negócios, um plus na competição entre empresas por

mercados e por lucros crescentes. Para elas, trata-se de ocupar os territórios com

estratégias definidas fora e para fora. A especificidade dos territórios não é limite, é

vantagem competitiva num mercado nacional e global. Por isso, os grandes projetos

que colonizam os territórios ignoram condicionalidades e limites socioambientais, de

direitos de cidadania.

Neste contexto, muda o caráter das disputas nos territórios e para os territórios. Tais

disputas adquirem uma dimensão que extrapola os territórios em si. As contradições

em movimento nos territórios os fazem parte de processos nacionais e mundiais.

A cidadania ativa local, a partir da sociedade civil, com suas formas e dinâmicas,

reage e luta contra a lógica mercantilizadora e exploratória dos grandes projetos do

desenvolvimentismo que lhe são impostos de fora. Na luta de resistência e de busca de

alternativas, em sua especificidade, está contida uma dimensão universalizante, que a

torna solidária com todas as diversas lutas Brasil e mundo afora contra o capitalismo

desterritorializado e sua lógica de apropriação privada, de mercantilização e domínio.

As lutas nos territórios, emanadas do interior das sociedades civis que aí se organizam,

apesar de sua fragilidade, enfrentam um desenvolvimento submetido ao mercado,

imposto pelo poder político do capital e sua expressão nas políticas governamentais,

gerador de riquezas para fora, deixando destruição, lixo, exclusões e desigualdades

nos territórios. O potencial democratizador das lutas socioambientais concretas,

de hoje, por serem todas territorializadas e, ao mesmo tempo, de dimensões

nacionais, regionais e mundiais, as torna embriões de alternativas democráticas

ao desenvolvimento, voltadas à defesa e ampliação dos direitos de cidadania, de

construção da sustentabilidade da vida e das próprias sociedades civis, contra a

economia e o poder do capital globalizado.

As disputas territoriais, no sentido aqui definido, estão em toda parte, nas cidades

e no campo. Fazendo uma cartografia das lutas socioambientais no Brasil de

hoje, estaremos vendo emergir uma espécie de geopolítica da cidadania ativa

antissistêmica em movimento. Seu potencial de transformação reside aí. As várias

lutas territorializadas precisam se conceber e se convencer do potencial que carregam,

conectando-se, articulando-se, formando redes e coalizões, criando fóruns e

plataformas, alimentando com isso uma nova onda de revitalização da democracia no

Brasil.
Em síntese, uma nova onda democratizadora depende da cidadania ativa

emergente das lutas socioambientais

Uma nova onda democratizadora tem possibilidades a partir dos territórios em que a

cidadania local se organiza e age contra as investidas do novo desenvolvimentismo, de

baixo para cima e de dentro para fora. Para transformar a economia e o poder, com

uma perspectiva de sustentabilidade da vida e democracia substantiva, é necessário

olhá-los a partir das demandas e possibilidades locais e territoriais, incorporando as

visões e propostas que emanam da cidadania ativa no seio de suas sociedades civis. A

própria economia e a democracia precisam se relocalizar, reterritorializar, funcionando

de baixo para cima, de forma subsidiária. Fortalecer os conflitos socioambientais

nos territórios é o caminho da democratização no Brasil atual, pois é aí que se

gestam sujeitos que reivindicam sua cidadania plena, a luta por direito a ter direitos

reconhecidos. Emergem nas sociedades civis dos territórios de cidadania, como

fermento transformador, ideias e projetos de construção de democracia radicalmente

inclusiva, econômica, social e culturalmente sem desigualdades ou discriminações de

qualquer espécie.

[Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil, julho 2013].

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