Segunda, 04 de novembro de 2013
RISCO DE VOLTA DA DIREITA?
"O que traria a volta da direita?", pergunta Ivo Lesbaupin. "Privatizações? Leilões do
petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas hidrelétricas na Amazônia?
Perda de direitos dos povos indígenas? Tropas militares para enfrentá-los? Código
Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A não realização da
reforma agrária?" E ele responde: "Tudo isso está sendo feito por este governo".
Segundo o professor da UFRJ, "existe uma direita mais à direita que este governo, sem
dúvida. Que é possível piorar, é sempre possível. Mas que este governo está montado para
atender aos interesses dos grandes grupos econômicos, também não há dúvida".
Ivo Lesbaupin é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É mestre em
Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ - e doutor
em Sociologia pela Université de Toulouse-Le-Mirail, França. É coordenador da ONG Iser
Assessoria, do Rio de Janeiro, e membro da direção da Abong. É autor e organizador de
diversos livros, entre os quais O Desmonte da nação: balanço do governo FHC (1999); O
Desmonte da nação em dados (com Adhemar Mineiro, 2002); Uma análise do Governo
Lula (2003-2010): de como servir aos ricos sem deixar de atender aos pobres (2010).
Eis o artigo.
A privatização do megacampo petrolífero de Libra (área de pré-sal) é um divisor de
águas. Todos os movimentos sociais do Brasil, inclusive alguns muito próximos ao governo,
se posicionaram contra. O governo se manteve inflexível e, copiando o governo FHC nas
grandes privatizações (Vale, Telebrás), garantiu o leilão com segurança policial e tropas
militares, de um lado, e batalhões de advogados da Advocacia Geral da União para
derrubar liminares, de outro.
O governo deixou claro de que lado está.
Muitas das análises sobre os governos do PT (Lula-Dilma) partem do pressuposto de que
houve antes um governo de direita, neoliberal, o de FHC, e que hoje temos um governo se
não de esquerda, ao menos de centro-esquerda, de coalizão.
Seria um governo em disputa, que ora tomaria medidas mais voltadas para os setores
populares ora voltadas para os setores dominantes. Isto dependeria da maior ou menor
pressão de cada um dos lados.
Este pressuposto leva a crer que este governo mereça todo o nosso apoio para evitar
a "volta da direita". Porque esta volta traria políticas que não queremos ver novamente.
Os governos do PT indubitavelmente deram mais atenção ao social que os governos
anteriores, como o aumento real do salário-mínimo e o programa Bolsa-Família, e
reduziram fortemente o desemprego. A política externa é mais independente e também
solidária com os governos progressistas de outros países da América Latina. E poderíamos
citar uma lista de avanços ocorridos nos últimos dez anos, avanços que devem ser mantidos
e devemos apoiar.
Há setores do governo que têm uma preocupação centrada na sociedade, nos
trabalhadores, que se dedicam a uma maior democratização. Mas, infelizmente, estes
setores não mandam no governo. E, na hora da cobrança, apoiam as grandes decisões
(Belo Monte, Libra...).
Porém, se examinarmos mais de perto, o que nos impressiona não são as diferenças com
os governos anteriores, são as semelhanças – cada vez maiores, à medida que o tempo
passa. O governo FHC é considerado uma “herança maldita”. Mas a política econômica que
privilegia o capital financeiro permanece de pé: os bancos tiveram mais lucros nos governos
do PT do que antes. E estes governos introduziram medidas que favoreceram ainda mais os
investidores financeiros ao isentá-los, em vários casos, de imposto. Não foi feita nenhuma
reforma estrutural nas estruturas geradoras da desigualdade no país. No entanto, foram
feitas reformas estruturais para atender aos interesses do capital, como a reforma da
previdência do setor público, aprovada no primeiro ano do governo Lula.
Os recursos do país: para quem vão prioritariamente?
Se queremos saber para quem o governo trabalha, temos de examinar o orçamento
realizado: para onde estão indo os recursos? Os recursos do país são destinados
fundamentalmente ao pagamento da dívida pública, interna e externa, e de seus juros. A
dívida externa chegou em dezembro de 2012 a 441 bilhões de dólares e a dívida interna a 2
trilhões e 823 bilhões de reais (cf. Auditoria Cidadã da Dívida). O orçamento realizado de
2012 mostra que 44% do nosso dinheiro foi usado para os juros, amortização e rolagem da
dívida, enquanto que apenas 5% para a saúde e 3% para a educação. Em suma, o destino
de quase metade do orçamento é a pequena camada mais rica do país – que são aqueles
que recebem os juros da dívida -, além dos credores externos. Cada décimo de aumento
dos juros pelo Banco Central significa maiores ganhos para os que já são muito ricos.
Portanto: o primeiro setor cujos interesses são atendidos é o capital financeiro (bancos e
investidores financeiros)
Obras de infraestrutura: para as empreiteiras
Mas, há um segundo setor que é também privilegiado pelo governo: são as grandes
empreiteiras – Odebrecht, OAS, Camargo Correia, Andrade Gutierrez... Elas estão em
todas as grandes obras de infraestrutura do país, entre as quais as usinas hidrelétricas –
Belo Monte é o exemplo mais notório – e até na do Maracanã. Em 1993, durante a CPI do
Orçamento, o senador José Paulo Bisol havia denunciado a existência de um “governo
paralelo” no país: eram as grandes empreiteiras, que distribuíam entre si as licitações
das obras públicas. Denunciou, mas nada aconteceu... A maior parte destas obras são
financiadas pelo BNDES, com recursos públicos, portanto.
Estas empreiteiras são também, junto com os bancos, as principais financiadoras das
campanhas eleitorais. Este dado nos ajuda a entender o empenho do governo na realização
de certas políticas – os megaprojetos, por exemplo, as privatizações, outro exemplo – e
no impedimento de controles sobre o capital – a não realização da auditoria da dívida, por
exemplo.
Portanto, o segundo setor cujos interesses são atendidos é constituído pelas grandes
empreiteiras.
O agronegócio: o grande aliado do governo no campo
E há um terceiro setor que tem recebido muito apoio do governo: o agronegócio. O governo
ajuda a agricultura familiar, sem dúvida, mas a proporção é de 90% para o agronegócio e
10% para a agricultura familiar. Esta é a razão pela qual, em dez anos de governos do PT,
a reforma agrária não avançou: o principal aliado do governo no campo é o agronegócio,
não os movimentos sociais. E certas medidas que favorecem este setor acabam sendo
aprovadas no Congresso – o Código Florestal -, porque o governo não quer perder este
aliado.
Portanto, o terceiro setor cujos interesses são atendidos é o agronegócio.
Povos indígenas: pedra no caminho do agronegócio, de megaprojetos de
infraestrutura, de grandes mineradoras
O governo está ressuscitando a política indigenista da ditadura, para a qual "o índio não
pode atrapalhar o progresso do país". O capítulo sobre os povos indígenas foi comemorado,
na época, como um dos mais avançados da Constituição Cidadã. Pois exatamente os
direitos destes povos originários ás suas terras estão sendo derrubados: pouco a pouco,
a cada nova usina hidrelétrica, a cada nova lei ou portaria (ou código...), os direitos estão
sendo violados e até as demarcações já feitas correm o risco de serem questionadas. Para
atender aos interesses de setores do capital, este governo está desprezando os direitos dos
povos indígenas.
O sistema tributário reprodutor da desigualdade social permanece
Por outro lado, o Brasil carrega outra “herança maldita”: o sistema tributário regressivo,
que o governo FHC acentuou. Isto significa que, ao invés de distribuir renda, este sistema
concentra renda, é um “Robin Hood” às avessas, tira dos pobres para dar aos ricos. É um
sistema pelo qual os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, porque nele o
peso maior está no imposto sobre o consumo. Mesmo aquele que não têm renda para pagar
imposto de renda compra bens, compra alimentos. E no preço dos bens está incluído o
imposto.
Embora tenha introduzido pequenos avanços, no essencial esta herança de FHC foi
mantida pelos governos do PT: a regressividade do sistema permanece. E a combinação
de superávit primário (...) com a política monetária de juros altos incidentes sobre a dívida
pública resulta “num dos mais perversos mecanismos de transferência de renda dos pobres
para os ricos de que se tem notícia na história do capitalismo. (...) Na verdade, o mais
poderoso mecanismo de concentração de renda na economia é essa combinação de política
fiscal e monetária perversa, onde o Estado atua como um redistribuidor de renda e de
riqueza a favor dos poderosos” (Assis, 2005: 89) (1).
Um primeiro meio para mudar esta grave injustiça seria fazer uma reforma tributária, para
tornar o sistema progressivo (os que podem mais, pagam mais). Mas o governo não fez
isso: ao contrário, apresentou um projeto de reforma que não mexe no caráter regressivo e
que cortará recursos da Seguridade Social, se for aprovada.
Haveria uma segunda maneira de reduzir a transferência de recursos para os ricos: seria
a realização de uma auditoria da dívida pública. Ela provaria que uma parte da dívida que
nós pagamos é irregular e isto reduziria substancialmente a sangria de recursos públicos. A
única auditoria que o país fez, em 1931, concluiu que 60% da dívida não tinham documentos
que a comprovassem. O mesmo aconteceu mais de 70 anos depois, quando o Equador
fez sua auditoria, em 2009: 65% da dívida eram eivadas de irregularidades. Como a nossa
dívida externa foi constituída principalmente durante a ditadura civil-militar de 1964-1985,
quando o Congresso não tinha acesso aos documentos, há sérias suposições de que parte
desta dívida é indevida. O que só uma auditoria poderia verificar e comprovar (a CPI da
dívida evidenciou várias irregularidades que teriam de ser examinadas, mas PT e PSDB se
uniram para impedir que esta CPI tivesse resultados).
Esta é uma exigência da constituição de 1988, a qual nem o governo FHC nem os
governos do PT puseram em prática. Preferiram favorecer os poucos privilegiados que
ganham com a manutenção do status quo. E desfavorecer os muitos que sofrem as
consequências de os recursos públicos não serem empregados onde deveriam: pois
esta é a razão da falta de recursos suficientes para a saúde, a educação, o transporte, o
saneamento básico, para os serviços públicos em geral.
Havia ainda uma grande diferença entre o governo neoliberal de FHC e os governos do
PT: as privatizações. No entanto, o governo Lula não fez uma auditoria das privatizações,
como se esperava; não reestatizou nenhuma das empresas privatizadas, como fez o
governo Evo Morales. O governo Lula privatizou algumas rodovias federais e o governo
Dilma passou a privatizar tudo: portos, aeroportos, rodovias, hospitais universitários e até
riquezas estratégicas como o petróleo.
O governo FHC havia quebrado o monopólio da Petrobras e 60% das ações desta
empresa estão hoje em mãos privadas. O governo Lula não reverteu este processo. O
governo FHC iniciou em 1997 o leilão das áreas de exploração do petróleo. Os governos
Lula e Dilma não interromperam os leilões, apesar de reiterados protestos dos movimentos
de trabalhadores, especialmente dos petroleiros. O governo Dilma promoveu o leilão de
petróleo do campo de Libra – cujas reservas valem no mínimo 1 trilhão de dólares - e
tem ignorado solenemente a oposição dos movimentos sociais. O petróleo é nosso? Não,
parte dele será das empresas privadas e estatais estrangeiras que venceram este leilão,
assim decidiu o governo brasileiro. É como se só devesse satisfação ao setor privado, às
multinacionais: os interesses do país, as reivindicações dos movimentos populares não são
prioritárias.
O que traria a volta da direita?
Privatizações? Leilões do petróleo? de áreas do pré-sal? Avanço do agronegócio? Usinas
hidrelétricas na Amazônia? Perda de direitos dos povos indígenas? Tropas militares para
enfrentá-los? Código Florestal? Plantio de transgênicos? Aumento do uso de agrotóxicos? A
não realização da reforma agrária?
Tudo isso está sendo feito por este governo.
Com exceção dos líderes do PSDB, todos os líderes da direita são hoje aliados do governo:
Sarney, Renan Calheiros, Jader Barbalho, Romero Jucá, Collor, Maluf, Sérgio Cabral,
Kátia Abreu...
Apesar de sua prática, de suas políticas fundamentais, o governo mantém um discurso
de esquerda, de quem defende os direitos dos pobres e oprimidos e que "a direita quer
solapar", "olhem o que a grande mídia diz de nós". Os movimentos de trabalhadores e
demais movimentos sociais veem suas reivindicações desprezadas (povos indígenas), não
atendidas (reforma agrária) ou mal atendidas (recursos para a agricultura familiar).
Movimentos sociais e entidades da sociedade civil precisam constantemente se mobilizar,
denunciar, fazer pressão, para evitar perda de direitos, para evitar retrocessos maiores. E a
maioria das vezes não o conseguem (Libra é apenas um exemplo).
Apesar da defesa e do apoio de alguns movimentos sociais, o governo nunca se sentiu
obrigado a cumprir os compromissos assumidos com relação aos trabalhadores: nem a
reforma agrária, nem a auditoria da dívida, nem a defesa das terras dos povos tradicionais...
A grande mídia é denunciada por autoridades públicas como parcial, agressiva, injusta com
o governo, adepta de uma postura demolidora. Mas o governo nada faz para democratizar
os meios de comunicação no Brasil, nada faz para quebrar o oligopólio existente, através
da regulamentação do setor, que permitiria abrir o espectro das comunicações para outros
atores. Por que? Porque, na verdade, apesar das críticas a aspectos secundários, a grande
mídia apoia todos os projetos importantes do governo: o pagamento da dívida sem auditoria,
os aumentos da taxa de juros (supostamente para conter a inflação), as usinas hidrelétricas
na Amazônia, a transposição do S. Francisco, o leilão de Libra... As críticas da grande
mídia mantêm a aparência de que os interesses da direita não estão sendo atendidos e
que o governo é "de esquerda". A manutenção desta aparência interessa aos que querem
se manter no poder. Na verdade, o governo receia a entrada em cena de outros meios de
comunicação, capazes de trazer outras opiniões, de fazer a crítica a aspectos centrais da
atual política. É por isso que, neste campo, tudo fica como está.
Existe uma direita mais à direita que este governo, sem dúvida. Que é possível piorar, é
sempre possível. Mas que este governo está montado para atender aos interesses dos
grandes grupos econômicos, também não há dúvida. Ele tem certamente várias políticas
louváveis, faz o enfrentamento da pobreza, reduz a miséria, melhora a capacidade
de consumo dos pobres com mais crédito. Mas não muda as estruturas geradoras da
desigualdade social e, por isso, continua transferindo a maior parte da renda e da riqueza
do país para os mais ricos do país e do mundo. E entregando nossas riquezas naturais para
o setor privado e as multinacionais. Isso mostra claramente a quem este governo serve em
primeiro lugar.
Nota do autor:
1.- ASSIS, José Carlos de (2005). A Macroeconomia do pleno emprego. In: SICSÚ, João,
PAULA, Luiz Fernando de, MICHEL, Renaut (orgs.) (2005). Novo desenvolvimentismo:
um projeto nacional de crescimento com eqüidade social. Barueri, Manole; Rio de Janeiro,
Fundação Konrad Adenauer, p. 77-93.
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