sábado, 30 de novembro de 2013

DÉCIMA CARTA ÀS ESQUERDAS: DEMOCRACIA OU CAPITALISMO?

BOAVENTURA SOUZA SANTOS
DÉCIMA CARTA ÀS ESQUERDAS: DEMOCRACIA OU CAPITALISMO?

Depois de um século de lutas que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário

da emancipação social seria um erro grave desperdiçar essa experiência.

No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a

relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou

socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centrome

no primeiro desafio.

Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a

relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de

contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante

muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo

nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre

presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.

Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a

distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos

e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia.

Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço

referencia ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro.

No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi

teorizada pelo liberalismo.

O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com

as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que

nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo,

bem pelo contrário. O conflito é, no fundo um conflito de classes pois as classes que

se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são

minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares

em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do

capitalismo.

Sendo um conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito

distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza por

parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da riqueza criada

em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de

que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções

do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse. Concebeu a democracia

liberal de modo a garantir isso mesmo através de medidas que mudaram no tempo mas

mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade

individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão

violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização

dos lóbis. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a

possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.

No imediato pós-segunda guerra mundial muito poucos países tinham democracia, vastas

regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira para consolidar

o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada por mais uma guerra

provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se o regime comunista que se

via como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.

Foi neste contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo

democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser

compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o que

implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação progressiva, a

imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental,

a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano científico, Keynes

representava então a ortodoxia económica e Hayek, a dissidência. No plano político, os

direitos econômicos e sociais (direitos do trabalho, educação, saúde e segurança social

garantidos pelo Estado) foram o instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas

dos cidadãos e as defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos

mercados”.

Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo

contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o crescimento

econômico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim sucedeu.

Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências

dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que

gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação (1970-1980)),

depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do desemprego e do ataque

ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida complementada com o endividamento do

Estado em resultado da luta do capital contra a tributação, da estagnação econômica e

do aumento das despesas sociais decorrentes do aumento do desemprego (meados de

1980-) e, logo depois, com o endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de

crédito concedidas por um sector financeiro finalmente livre de regulações estatais, para

iludir o colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados

de 1990-).

Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se

tornou claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a conversão

da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades sociais e o assalto

final às expectativas de vida digna da maioria (os trabalhadores, os pensionistas,

os desempregados, os imigrantes, os jovens em busca de emprego,) para garantir

as expectativas de rentabilidade da minoria (o capital financeiro e seus agentes). A

democracia perdeu a batalha e só não perderá a guerra se as maiorias perderem o medo,

se se revoltarem dentro e fora das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo,

como sucedeu há sessenta anos.

Nos países do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora,

diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina, pode

até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e não é por acaso

que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a discutir o tema do

socialismo do século XXI mesmo que a realidade esteja longe dos discursos. Há muitas

razões para tal mas talvez a principal tenha sido a conversão da China ao neoliberalismo,

o que provocou, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma nova corrida

aos recursos naturais.

O capital financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma

fonte extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos progressistas,

entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos movimentos sociais

das décadas anteriores, pudessem proceder a uma redistribuição da riqueza muito

significativa e, em alguns países, sem precedente.

Por esta via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas

por sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de

acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o intensificou.

Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar, com os grupos sociais

ligados à terra e aos territórios onde se encontram os recursos naturais, os povos

indígenas e os camponeses.

Nos países do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome o

boom dos recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de,

em teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução democrática

e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extrativista obtém melhores condições de

rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia de baixíssima intensidade

(sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a corrupção das elites, através do seu

envolvimento na privatização das concessões e das rendas extrativistas. Não é pois de

esperar nenhuma profissão de fé na democracia por parte do capitalismo extractivista, até

porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política.

Por sua vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não

chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com a

solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as migalhas do

rendimento extractivista. As populações mais diretamente afetadas pelo extrativismo

são os camponeses em cujas terras estão a jazidas de minérios ou onde se pretende

implantar a nova economia de plantação, agro-industrial. São expulsas de suas terras

e sujeitas ao exílio interno. Sempre que resistem são violentamente reprimidas e sua

resistência é tratada como um caso de polícia.

Nestes países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema político.

Desta análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na

Europa do Sul é manifestação de um problema muito mais vasto que está a aflorar

em diferentes formas nas várias regiões do mundo. Mas, formulado assim, o problema

pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que expressa. Não se trata apenas de

questionar o futuro da democracia. Trata-se também de questionar a democracia do

futuro.

A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece

que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que o capitalismo

volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na

medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que

veem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente

injusto e descontroladamente violento têm de centrar-se na busca de uma concepção de

democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo.

Depois de um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no

imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa

experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta antidemocrática.

Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa realidade

radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio

senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e

do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anticolonialista

e anti-patriarcal.

Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária -o nome pouco

importa--mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser

descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário, assenta

em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo;

em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a democracia real que deve

prevalecer.

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