As mobilizações brasileiras e a
guerra civil de baixa intensidade
Márcia D`Angelo
04/11/2013
Na realidade, as manifestações de junho ocorridas no Brasil
em junho de 2013 podem ser denominadas jornadas de junho, numa alusão às
manifestações ocorridas em 1848 na França que ficaram conhecidas como prolongamento
das revoluções burguesas do século XIX em sua versão francesa. Nessa ocasião,
as revoltas burguesas foram acompanhadas de mobilizações proletárias que
exigiam uma radicalização das transformações ocorridas com a queda do antigo
regime na França, considerando que 1848 foi também o ano da publicação do
Manifesto Comunista de Marx e Engels, o proletariado francês tinha suas
demandas específicas condizentes com o processo de industrialização que ocorria
e se estabelecia a transferência do poder político para a burguesia.
A analogia é um tanto forçada considerando-se as conjunturas
diferenciadas entre uma França que dava continuidade a um processo
revolucionário burguês que teve seu auge em 1870 com a Comuna de Paris e a
partir daí, desconsiderando o fuzilamento dos communards, o país despontava
como a segunda nação industrializada e portanto também como centro do capitalismo.
O caso brasileiro é diverso, somos um arremedo de nação como
diria Marx. Somos a periferia do capitalismo, haja vista que não fizemos as
reformas burguesas necessárias para que houvesse inclusão social ou pelo menos
uma diferença social menos gritante, a partir da reforma agrária, urbana,
educacional, tributária, política, taxação de grandes fortunas, etc. É claro
que a escravidão de quase 400 anos e o analfabetismo vão colaborar para a falta
de cidadania, mas essas reformas teriam de qualquer maneira muita dificuldade
de serem efetivadas tendo em vista que o centro do capital colonizou (do
imperialismo do século XIX em diante) a América Latina de forma a garantir uma
dependência baseada na deterioração dos termos de troca em que o preço dos
produtos latino-americanos seria forjado pelos países centrais (Inglaterra e
depois Estados Unidos), assim como a necessidade estrutural de manter uma
divisão internacional do trabalho em que esses países não conseguissem realizar
seu processo de plena industrialização em todas as suas etapas (produção de
bens de consumo semiduráveis, bens intermediários, bens de capital e por fim
bens de consumo duráveis).
Os golpes e ditaduras respaldados pela CIA e Operação Condor
nas décadas de 1960 e 1970 podem ser entendidos nessa conjuntura de evitar-se o
pleno desenvolvimento capitalista na periferia, não comprometendo a concorrência
ou mesmo perpetuar a exploração desses países, garantindo o desenvolvimento do
centro do capital. Por causa disso, a burguesia latino americana nunca foi
revolucionária como dizia Fernando Henrique Cardoso e assim sendo, aceitou
plenamente o papel de sócia menor das multinacionais que se instalaram nos
países (produtora de auto peças das montadoras multinacionais, por exemplo, no
nosso caso).
Vivenciamos uma ditadura civil-militar de 21 anos, fizemos
uma transição democrática e agora estamos sentindo as demandas de um processo
democrático em pleno século XXI, em que o neoliberalismo enfraqueceu mais ainda
o Estado com o desmonte do governo FHC, tanto
em termos de privatizações (cuja maior escândalo é a siderúrgica Vale do Rio
Doce) quanto em termos das relações trabalhistas como a precarização do trabalho, terceirizações que
definem o padrão toyotista/taylorizado (flexível) do capital.
Com o PT na liderança do país ocorre um processo de
neodesenvolvimentismo em que as reformas estruturais não são efetivadas, mas o
início de um processo de distribuição de renda começa a se definir com os
programas sociais como a Bolsa Família principalmente. Graças aos programas
sociais houve o aumento de consumo das classes D e E. Essa certa Inclusão é
acompanhada por um processo de desindustrialização e medidas que comprometem
nossa soberania como nação, como pôde ser verificado com o leilão do Campo de
Libra ocorrido recentemente em que não houve uma concessão, mas uma partilha da
Petrobrás relativa ao pré-sal em que as empresas estrangeiras como a
anglo-holandesa Shell e as duas chinesas
abocanharam 60% das ações ficando a Petrobrás com 40%.
É nesse contexto de neodesenvolvimentismo que devemos inserir
e entender as demandas populares, as mobilizações de setores organizados e não
organizados da sociedade; setores rurais e setores urbanos, setores da baixa
classe média e proletariado das periferias. Segundo o sociólogo Giovanni Alves
(Jornal Brasil de Fato n. 556, p. 70) teria ocorrido uma mudança nas frações de
classe do proletariado. O subproletariado teria se transformado na classe
trabalhadora atual pelo fato de ter sido o grande beneficiário dos programas sociais dos governos do PT (Lula e Dilma)
enquanto o proletariado tradicional, escolarizado passou a ser uma fração de
classe chamada de proletariado médio urbano ou precariado , relegado ao segundo
plano pelo governo (que priorizou o proletariado pobre) que ao utilizar os serviços públicos reclamam de sua
ineficiência e precariedade (saúde, educação, saneamento, cultura, transporte
público) e participam das manifestações.
Poderíamos acrescentar as demandas do proletariado urbano ou
rural desassistido pela reforma agrária e urbana que se vêm privados pelo
acesso à moradia decente e são vítimas diárias de reintegrações de posse de um
território nacional em que 70% são terras devolutas já que não possuem
escritura registrada em cartório. Além disso, esse proletariado que pode ter
sido beneficiado pela bolsa família sofre uma violência constante da polícia
militar que usa a busca de traficantes de drogas para intimidar essa população
e matar seus jovens. É aí que nasce a cultura da violência, pois a revolta e
ódio da polícia fica latente nessa população. Talvez então haja uma união
dessas frações de classe proletária (o subproletariado agora elevado à atual
classe trabalhador urbana) no sentido de promoverem manifestações contra a
violência de verem destruídas suas moradias, seus jovens serem mortos diariamente e o recente precariado ou médio proletariado
escolarizado que percebe e se mobiliza contra as deficiências dos serviços
públicos ao serem seus usuários constantes. Toda essa situação é um barril de
pólvora.
Apesar do Programa Mais Médicos significar uma resposta do
governo Dilma às deficiências no setor da saúde, sabe-se que há necessidade de
muito investimento financeiro além de vontade política (negada pelo Congresso,
mídia corporativa, Poder Judiciário, Forças Armadas) para viabilizar as
reformas dos serviços públicos reclamadas
pela população. Essa verba inclusive, já está comprometida como pagamento da
dívida pública da União o que significa que mais de 1 trilhão de reais deve ser
pago aos bancos pelo governo, ou seja 42% do PIB. Isso significa que o Estado Brasileiro
está capturado pelo capital financeiro, como se refere Giovanni Alves, e é por esse motivo que as reformas
estruturais não podem ser efetuadas. Devemos salientar que nem o governo do
PSDB integralmente neoliberal e nem os governos neodesenvolvimentistas do PT estão
dispostos a fazerem “a auditoria soberana da dívida pública porque pertencem a um bloco de poder constituído no país”
(Giovanni Alves) dentro dos parâmetros do toyotismo/taylorizado, da acumulação
flexível e no mercado mundial obedecem aos ditames do desenvolvimento neoliberal.
Parece que estamos diante dos limites do desenvolvimentismo
porque além de haver uma desindustrialização nacional, partilha de nosso setor
petrolífero, ainda há a questão da impossibilidade do Estado Brasileiro viabilizar
as reformas estruturais para atender às demandas populares pelos serviços
públicos porque esse Estado não faz a auditoria da dívida pública a qual o
governo está atrelado. Haveria necessidade de um novo projeto de
desenvolvimento com novas forças políticas o que é dificultado por uma esquerda
que é fraca politicamente e fragmentada socialmente. Além disso, o Poder Judiciário,
o Parlamento, as Forças Armadas e a grande mídia são “trincheiras da ordem
burguesa desigualitária que impedem reformas sociais estruturais” (Giovanni
Alves)
Os limites do neodesenvolvimentismo são os limites do Estado
Brasileiro que nasceu com a redemocratização. O outro lado da moeda do
capitalismo periférico com seu projeto de modernização social com pouca margem
de manobra do capital em crise estrutural é a representação política vigente em
crise e envolta em corrupção. Assim sendo, conforme Marx, o capital periférico
renuncia à sua capacidade de pleno desenvolvimento através de pressões
internacionais relativas à divisão internacional do trabalho que condena a
América Latina a ser produtora de commodities em pleno neoliberalismo do século
XXI e também através das elites nacionais representadas pelo Poder Judiciário,
o Congresso Nacional, as Forças Armadas, a grande mídia, sustentáculos da ordem
burguesa nos países periféricos como o Brasil.
Se a ditadura civil-militar que durou 21 anos, mais os 5 anos
de transição democrática, os 10 anos do neoliberalismo do PSDB e 10 anos de
neodesenvolvimentismo do PT não possibilitaram a formação cultural e política
do povo brasileiro no sentido de “uma nova hegemonia cultural e de classe” se poderia prever que a população desencantada
com o processo de redemocratização pouco includente (considerando-se o médio
proletariado) fosse às ruas, que é o único espaço não ocupado pelo capital
financeiro (como nos relata o sociólogo Boaventura de Sousa Santos) com as suas
demandas não elaboradas, mais dizendo o que não quer do o que quer e como quer.
A crise do Estado democrático liberal burguês está na base
das mobilizações populares que contaram e
contam com uma população que nunca havia se manifestado, é despolitizada e foi
arregimentada pelas redes sociais. Poderia se considerar um grande avanço para
a democracia essa atitude da população ocupar ruas e praças em vários países
exigindo serem ouvidas sobre suas reivindicações. Sousa Santos denomina esse
fenômeno como o início de um processo de “guerra civil de baixa intensidade” em
que há “uma grande agitação social porque as instituições não funcionam
propriamente” e esse processo pode ser verificado em algumas ocasiões como
1848, em 1917 e agora em 2011 e 2013.
As manifestações no Brasil contaram com a participação
inclusive de setores da classe média principalmente nas mobilizações lideradas pelo
Movimento Passe livre (MPL). Entretanto, não foram apenas as frações de classe
da classe média que estiveram presentes nos protestos. Os setores já
considerados do proletariado urbano (sem falar das mobilizações dos movimentos
organizados como o MST, Sem Teto, CUT, petroleiros da FUP,etc.) cada vez
comparecem mais às mobilizações e protestos que parecem não terem data para terminar.
A fração de classe do
proletariado denominada agora médio proletariado participa desde o início e o
antigo subproletariado, tornado a atual classe trabalhadora pelos programas
sociais do neodesenvolvimentismo participa ativamente dos movimentos.
Cotidianamente somos surpreendidos por manifestações pela moradia, contra
reintegrações de posse, pelo movimento da Favela do Moinho (que foi destruída
várias vezes e a prefeitura e o governo do Estado não estão interessados em
reabilitá-la por ser a última favela da capital paulista do centro da cidade e
o preço é apetecível para o capital imobiliário) assim como dezenas de
protestos contra a morte de adolescentes assassinados pela polícia militar de
São Paulo e Rio de Janeiro.
Para o sociólogo Giuseppe Cocco as manifestações dos
professores em greve no Rio de Janeiro em outubro são as que mais se aproximam
das jornadas de junho, em que houve a participação de milhares de
manifestantes. Ocorre que essas manifestações foram consideradas “violentas”
assim como todas as que ocorrem na periferia das grandes metrópoles como São
Paulo e Rio de Janeiro já que se verifica a participação dos black blocs, grupo
mascarado que se notabiliza por defender os principais protagonistas (no caso
do Rio os professores) da repressão policial, assim como enfrentar os policiais
e por fim responder à truculência da PM com
pedras ou até depredações de ícones do capitalismo. A grande questão atual é
entender essa participação dos black blocs e encará-los não como um grupo criminoso como
nos querem fazer entender o Congresso Nacional, a grande mídia, o Poder
Judiciário, as Forças Armadas e o Poder Executivo estadual e federal. Alguém
tem que ouvir os black blocs, dialogar com eles para que o processo democrático
caminhe. Ocorre que o Ministro da Justiça pressionado por governadores e
secretários de segurança já enquadraram esses jovens como violentos e
desordeiros que destoam das manifestações democráticas que devem ser
“pacíficas”.
Sabendo a origem desses jovens, possivelmente oriundos do
subproletariado, hoje nova classe trabalhadora, que vivencia cotidianamente a
violência nos morros e nas cidades, violência essa protagonizada pelas polícias
militares à caça de traficantes, de ocupantes de terras devolutas denominados
pela grande mídia de invasores ou simplesmente
de adolescentes que por questões pessoais devem ser assassinados,
devemos refletir um pouco.
Até que ponto os policiais militares estão preparados para
enfrentar a população que se organiza e protesta pela falta ou destruição de
moradia, por assassinatos de seus jovens sem motivo, pela falta de saúde,
educação, saneamento, mobilidade urbana, reforma urbana, reforma agrária? Como
evitar a violência nas manifestações se os próprios PMs com seus gases
intimidam e violam o direito de protesto? Como desmilitarizar a polícia para
que ela se transforme em segurança da população e não em sua insegurança e
morte? Como dialogar com os mascarados já que as máscaras pretas se proibidas
podem ser substituídas por máscaras rosas
e pacíficas e assim haveria uma harmonia entre os homossexuais e os
black blocs como na Espanha?
São questões difíceis de serem respondidas. Para evitar a
cultura da violência há que se considerar a urgência em se promover as reformas
estruturais que estão impactadas pelas elites. O capital está em crise, um novo
neoliberalismo se avizinha, mas o povo não vai sair da rua. Parece que
vivenciou e perdeu o medo da repressão. Boaventura de Sousa Santos considera
que os jovens mascarados black blocs deveriam repensar sua tática nas
mobilizações haja vista que é muito importante o povo estar na rua pressionando
o governo uma vez que “o capital financeiro é influente, o Congresso é
pressionado pela Monsanto e sua semente
terminator, suicida e estéril, há uma aliança entre evangélicos e ruralistas”.
O governo deve receber pressão de baixo, de pessoas que nunca foram às ruas
para viabilizar as reformas necessárias. Entretanto muitas pessoas estão com medo de comparecer às manifestações
devido à violência policial.
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