Leonardo Boff
Teólogo-Filósofo
2013-11-11
A importância da espiritualidade para a saúde
Em geral todos os operadores de saúde foram moldados pelo
paradigma científico da modernidade que operou uma separação
drástica entre corpo e mente e entre ser humano e natureza. Criou
as muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o
diagnóstico das enfermidades e também para as formas de cura.
Reconhecido este mérito, não se pode esquecer que se perdeu a
visão de totalidade: o ser humano inserido no todo maior da sociedade,
da natureza e das energias cósmicas e a doença como uma fratura
nesta totalidade e a cura como uma reintegração nela.
Há uma instância em nós que responde pelo cultivo desta
totalidade, que zela pelo Eixo estruturador de nossa vida: é a
dimensão do espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade
é o cultivo daquilo que é próprio do espírito que é sua capacidade de
projetar visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e religar
todas as coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se espírito é relação e vida, seu oposto não é matéria e corpo
mas a morte como ausência de relação. Nesta acepção, espiritualidade
é toda atitude e atividade que favorece a expansão da vida, a
relação consciente, a comunhão aberta, a subjetividade profunda
e a transcendência como modo de ser, sempre disposto a novas
experiências e a novos conhecimentos.
Neurobiólogos e estudiosos do cérebro identificaram a base
biológica da espiritualidade. Ela se situa no lobo frontal do cérebro.
Verificaram empiricamente que sempre que se captam os contextos
mais globais ou ocorre uma experiência significativa de totalidade
ou também quando que se abordam de forma existencial (não
como objeto de estudo) realidades últimas, carregadas de sentido
e que produzem atitudes de veneração, de devoção e de respeito,
se verifica uma aceleração das vibrações em hertz dos neurônios aí
localizados. Chamaram a este fenômeno de “ponto Deus” no cérebro
ou da emergência da “mente mística”(Zohar, QS: Inteligência espiritual,
2004). Trata-se de uma espécie de órgão interior pelo qual se capta a
presença do Inefável dentro da realidade.
Este fato constitui uma vantagem evolutiva do ser humano que,
enquanto homem-espírito, percebe a Realidade Fontal sustendando
todas as coisas. Dá-se conta de que pode surpreendentemente,
entabular um diálogo e buscar uma comunhão íntima com ela. Tal
possibilidade o dignifica, pois o espiritualiza e o leva a graus mais altos
de percepção do Elo que liga e re-liga todas as coisas. Sente-se inserido
no Todo.
Este “ponto Deus” se revela por valores intangíveis como
mais compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de
dignidade. Despertar este “ponto Deus”, tirar as cinzas que uma
cultura demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir
que a espiritualidade aflore na vida das pessoas.
No termo, espiritualidade não é pensar Deus mas sentir Deus
mediante este órgão interior e fazer a experiência de sua presença e
atuação a partir do coração. Ele é percebido como entusiasmo (em
grego significa ter um deus dentro) que nos toma e nos faz saudáveis e
nos dá a vontade de viver e de criar continuamente sentidos de existir.
Que importância emprestamos a esta dimensão espiritual no
cuidado da saúde e da doença? A espiritualidade possui uma força
curativa própria. Não se trata de forma nenhuma de algo mágico e
esotérico. Trata-se de potenciar aquelas energias que são próprias
da dimensão espiritual tão válidas como a inteligência, a libido, o
poder, o afeto entre outras dimensões do humano. Estas energias são
altamente positivas como amar a vida, abrir-se ao demais, estabelecer
laços de fraternidade e de solidariedade, ser capaz de perdão, de
misericórdia e de indignação face às injustiças deste mundo como o faz
exemplarmente o Papa Francisco.
Além de reconhecer todo o valor das terapias conhecidas
existe ainda um supplément d’ame como diriam os franceses. Ela
quer sinalizar um complemento daquilo que já existe mas que
o reforça e enriquece com fatores oriundos de outra fonte de
cura. O modelo estabelecido de medicina não detém, por certo, o
monopólio do diagnóstico e da cura. É aqui que encontra o seu lugar a
espiritualidade.
A espiritualidade reforça na pessoa, em primeiro lugar, a
confiança nas energias regenerativas da vida, na competência do
médico/a e no cuidado diligente ou do enfermeiro/a. Sabemos
pela psicologia do profundo e da transpessoal, do valor terapêutico
da confiança na condução normal da vida. Confiar significa
fundamentalmente afirmar: a vida tem sentido, ela vale a pena, ela
detém uma energia interna que a autoalimenta, ela é preciosa. Essa
confiança pertence a uma visão espiritual do mundo.
Pertence à espiritualidade, a convicção de que a realidade que
captamos é maior do que as análises nos dizem. Podemos ter acesso a
ela pelos sentidos interiores, pela intuição e pelos secretos caminhos
da razão cordial. Percebe-se que há uma ordem subjacente à ordem
sensível, como o sustentava sempre o grande físico quântico, prêmio
Nobel, David Bohm, aluno predileto de Einstein.
Esta ordem subjacente responde pelas ordens visíveis e ela
sempre pode nos trazer surpresas. Não raro, os próprios médicos/
as se surpreendem, com a rapidez com que alguém se recupera ou
mesmo como situações, normalmente, dadas como irreversíveis,
regridem e acabam levando à cura. No fundo é crer que o invisível e o
imponderável são partes do visível e do previsível.
Pertence também ao mundo espiritual, a esperança imorredoura
de que a vida não termina na morte, mas se transfigura através dela.
Nossos sonhos de voltar à vida normal deslancham energias positivas
que contribuem na regeneração da vida enferma.
Força maior, entretanto, é a fé de sentir-se na palma da mão
de Deus. Entregar-se, confiadamente, à sua vontade, desejar
ardentemente a cura mas também acolher serenamente sua vontade
de chamar-nos para si: eis a presença da energia espiritual. Não
morremos, Deus vem nos buscar e nos levar para onde pertencemos
desde sempre, para a sua Casa e para o seu convívio. Tais convicções
espirituais funcionam como fontes de água viva, geradoras de cura e
de potência de vida. É o fruto da espiritualidade.
Leonardo Boff escreveu com Jean-Yves Leloup e outros, Espírito e
Saúde, Vozes 2007.
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