segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A MAIS LONGA VIAGEM: RUMO AO PRÓPRIO CORAÇÃO Leonardo Boff

25 de novembro de 2013

A MAIS LONGA VIAGEM: RUMO AO PRÓPRIO CORAÇÃO 

"O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita,
com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o
racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura, uma espécie de
lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento humano e dos
demais seres e da própria Mãe Terra", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Segundo ele, "a razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada
de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão
interessada e afetiva com o objeto do conhecimento".
Eis o artigo.
Observava o grande conhecedor dos meandros da psiquê humana C.G. Jung: a viagem
rumo ao próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua.
No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar a loucura e a
morte e energias que conduzem ao êxtase e a comunhão com o Todo.
Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a
estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de
sumariá-las.
Indo diretamente ao assunto diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta
não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade
humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas expressões. A razão
pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de
interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto
do conhecimento.
Mais que ideias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais
que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até
arriscar a própria vida.
O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas
são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando
as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram a dialogar
quimicamente com o meio para poder sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do
momento em que, há milhões de anos, surgiu o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro
portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria, gestada no seio desta
espécie nova de animais, a qual nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou
o patamar autoconsciente e inteligente, Todos nós estamos vinculados a esta tradição primeva.
O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita,
com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o
racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura, uma espécie de
lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento humano e dos
demais seres e da própria Mãe Terra. O Papa Francisco em Lampedusa face aos
imigrados africanos criticou a globalização da insensibilidade, incapaz de se compadeer e
de chorar.
Mas, podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros) se
começou a resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola literária.
é um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos seres humanos na
grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia, 28-50).
Modernamente o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse
passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves
crises por que passa a vida, a Humanidade e a Terra. A razão intelectual precisa integrar
a inteligência emoconal sem o que não construiremos uma realidade social integrada e de
rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar pelo afeto e pelo amor.
Um dado entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela
alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psiquê humana. Partindo
de Aristótles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais como São Boaventura(
chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher,
MaxScheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e Renê
Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura do desejo.
O desejo não é um impulso qualquer. é um motor que dinamiza e põe em marcha toda a
vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido também pelo filósofo Ernst Bloch
por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é infinito e confere o caráter infinito ao
projeto humano.
O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando
realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser
humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito desejado. Pode ser a
pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem pelo mundo
ou uma nova marca de celular.
Não passa muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas
fazem aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse
tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar de um objeto
a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu desejo? Ouso responder: este é o
Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito.
Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum
de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável peregrino do Infinito.
Em sua autobiografia, As Confissões testemunha com comovido sentimento:
Tarde te amei, é Beleza tão antiga e tão nova.Tarde te amei.Tu me tocaste e eu ardo de
desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não repousar em ti (livro
X, n.27).
Aqui temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu obscuro objeto
sempre desejado, no sono e na vigília. Só o Infinito se adéqua ao desejo infinito do ser
humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o sábado do descanso
humano e divino.
PARA LER MAIS:
 24/07/2009 - Ser mais com menos: eis o futuro da humanidade. Entrevista especial
com Leonardo Boff
 20/03/2013 - A cobiça como desejo que não aceita ser estruturado por um limite.
Leituras do Gênesis pelo exegeta André Wenin
 12/12/2011 - Marketing do desejo

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