sábado, 30 de novembro de 2013

DÉCIMA CARTA ÀS ESQUERDAS: DEMOCRACIA OU CAPITALISMO?

BOAVENTURA SOUZA SANTOS
DÉCIMA CARTA ÀS ESQUERDAS: DEMOCRACIA OU CAPITALISMO?

Depois de um século de lutas que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário

da emancipação social seria um erro grave desperdiçar essa experiência.

No início do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a

relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito (capitalista ou

socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centrome

no primeiro desafio.

Ao contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer pensar, a

relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa, senão mesmo de

contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema mundial, o que durante

muito tempo foi chamado Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo

nos países centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre

presente. Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.

Uma análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a

distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes períodos

e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de democracia.

Nesta carta concebo o capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço

referencia ao tipo que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro.

No que respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi

teorizada pelo liberalismo.

O capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com

as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o governo das maiorias que

nem têm capital nem razões para se identificar com as “necessidades” do capitalismo,

bem pelo contrário. O conflito é, no fundo um conflito de classes pois as classes que

se identificam com as necessidades do capitalismo (basicamente a burguesia) são

minoritárias em relação às classes (classes médias, trabalhadores e classes populares

em geral) que têm outros interesses cuja satisfação colide com as necessidades do

capitalismo.

Sendo um conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito

distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza por

parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da riqueza criada

em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de

que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as revoluções

do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse. Concebeu a democracia

liberal de modo a garantir isso mesmo através de medidas que mudaram no tempo mas

mantiveram o objetivo: restrições ao sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade

individual, sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão

violenta de atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização

dos lóbis. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a

possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.

No imediato pós-segunda guerra mundial muito poucos países tinham democracia, vastas

regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira para consolidar

o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada por mais uma guerra

provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se o regime comunista que se

via como alternativa ao capitalismo e à democracia liberal.

Foi neste contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo

democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser

compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o que

implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação progressiva, a

imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental,

a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano científico, Keynes

representava então a ortodoxia económica e Hayek, a dissidência. No plano político, os

direitos econômicos e sociais (direitos do trabalho, educação, saúde e segurança social

garantidos pelo Estado) foram o instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas

dos cidadãos e as defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos

mercados”.

Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo

contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o crescimento

econômico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim sucedeu.

Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências

dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que

gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação (1970-1980)),

depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do desemprego e do ataque

ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida complementada com o endividamento do

Estado em resultado da luta do capital contra a tributação, da estagnação econômica e

do aumento das despesas sociais decorrentes do aumento do desemprego (meados de

1980-) e, logo depois, com o endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de

crédito concedidas por um sector financeiro finalmente livre de regulações estatais, para

iludir o colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados

de 1990-).

Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se

tornou claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a conversão

da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades sociais e o assalto

final às expectativas de vida digna da maioria (os trabalhadores, os pensionistas,

os desempregados, os imigrantes, os jovens em busca de emprego,) para garantir

as expectativas de rentabilidade da minoria (o capital financeiro e seus agentes). A

democracia perdeu a batalha e só não perderá a guerra se as maiorias perderem o medo,

se se revoltarem dentro e fora das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo,

como sucedeu há sessenta anos.

Nos países do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora,

diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina, pode

até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e não é por acaso

que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a discutir o tema do

socialismo do século XXI mesmo que a realidade esteja longe dos discursos. Há muitas

razões para tal mas talvez a principal tenha sido a conversão da China ao neoliberalismo,

o que provocou, sobretudo a partir da primeira década do século XXI, uma nova corrida

aos recursos naturais.

O capital financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma

fonte extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos progressistas,

entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos movimentos sociais

das décadas anteriores, pudessem proceder a uma redistribuição da riqueza muito

significativa e, em alguns países, sem precedente.

Por esta via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas

por sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de

acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o intensificou.

Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar, com os grupos sociais

ligados à terra e aos territórios onde se encontram os recursos naturais, os povos

indígenas e os camponeses.

Nos países do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome o

boom dos recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de,

em teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução democrática

e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extrativista obtém melhores condições de

rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia de baixíssima intensidade

(sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a corrupção das elites, através do seu

envolvimento na privatização das concessões e das rendas extrativistas. Não é pois de

esperar nenhuma profissão de fé na democracia por parte do capitalismo extractivista, até

porque, sendo global, não reconhece problemas de legitimidade política.

Por sua vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não

chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com a

solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as migalhas do

rendimento extractivista. As populações mais diretamente afetadas pelo extrativismo

são os camponeses em cujas terras estão a jazidas de minérios ou onde se pretende

implantar a nova economia de plantação, agro-industrial. São expulsas de suas terras

e sujeitas ao exílio interno. Sempre que resistem são violentamente reprimidas e sua

resistência é tratada como um caso de polícia.

Nestes países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema político.

Desta análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na

Europa do Sul é manifestação de um problema muito mais vasto que está a aflorar

em diferentes formas nas várias regiões do mundo. Mas, formulado assim, o problema

pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que expressa. Não se trata apenas de

questionar o futuro da democracia. Trata-se também de questionar a democracia do

futuro.

A democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me parece

que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que o capitalismo

volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta última sobreviverá na

medida em que o capitalismo global se puder servir dela. A luta daqueles e daquelas que

veem na derrota da democracia liberal a emergência de um mundo repugnantemente

injusto e descontroladamente violento têm de centrar-se na busca de uma concepção de

democracia mais robusta cuja marca genética seja o anti-capitalismo.

Depois de um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no

imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa

experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta antidemocrática.

Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa realidade

radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não exerce o seu domínio

senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente, do colonialismo e

do patriarcado, tal democracia radical, além de anti-capitalista tem de ser também anticolonialista

e anti-patriarcal.

Pode chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária -o nome pouco

importa--mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser

descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário, assenta

em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à custa do capitalismo;

em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a democracia real que deve

prevalecer.

Uma justiça sem venda, sem balança e só com a espada?

Uma justiça sem venda, sem balança e só com a espada?

Jornal Brasil de Fato
 
A Justiça, como instituição, desde tempos imemoriais, foi estatuída exatamente para evitar que o justiciamento fosse feito pelas próprias mãos e inocentes fossem injustamente condenados
29/11/2013
Leonardo Boff
Tradicionalmente a Justiça é representada por uma estátua que tem os olhos vendados para simbolizar a imparcialidade e a objetividade; a balança, a ponderação e a equidade; e a espada, a força e a coerção para impor o veredito.
Ao analisarmos o longo processo da Ação Penal 470 que julgou os envolvidos na dita compra de votos para os projetos do governo do PT, dentro de uma montada espetacularização midiática, notáveis juristas, de várias tendências, criticaram a falta de isenção e o caráter político do julgamento.
Não vamos entrar no mérito da Ação Penal 470 que acusou 40 pessoas. Admitamos que houve crimes, sujeitos às penas da lei. Mas todo processo judicial deve respeitar as duas regras básicas do direito: a presunção da inocência e, em caso de dúvida, esta deve favorecer o réu.
Em outras palavras, ninguém pode ser condenado senão mediante provas materiais consistentes; não pode ser por indícios e ilações. Se persistir a dúvida, o réu é beneficiado para evitar condenações injustas. A Justiça como instituição, desde tempos imemoriais, foi estatuída exatamente para evitar que o justiciamento fosse feito pelas próprias mãos e inocentes fossem  injustamente condenados, mas sempre no respeito a estes dois princípios fundantes.
Parece não ter prevalecido, em alguns ministros de nossa Corte Suprema, esta  norma básica do Direito Universal. Não sou eu quem o diz, mas notáveis juristas de várias procedências. Valho-me de dois de notório saber e pela alta respeitabilidade que granjearam entre seus pares. Deixo de citar as críticas do notável jurista Tarso Genro por ser do PT.
O primeiro é Ives Gandra Martins, 88 anos, jurista, autor de dezenas de livros, professor da Mackenzie, do Estado Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra. Politicamente se situa no pólo oposto ao PT, sem sacrificar em nada seu espírito de isenção.
No dia 22 de setembro de 2012, na FSP, numa entrevista à Mônica Bérgamo, disse claramente com referência à condenação de José Direceu por formação de quadrilha: todo o processo lido por mim não contem nenhuma prova. A condenação se fez por indícios e deduções com a utilização de uma categoria jurídica questionável, utilizada no tempo do nazismo, a “teoria do domínio do fato.”
José Dirceu, pela função que exercia, “deveria saber”. Dispensando as provas materiais e negando o princípio da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”, foi enquadrado na tal teoria.
Claus Roxin, jurista alemão que se aprofundou nesta teoria, em entrevista à FSP de 11/11/2012, alertou para o erro de o STF tê-la aplicado sem amparo em provas.
De forma displicente, a Ministra Rosa Weber disse em seu voto:”Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”. Qual literatura jurídica? A dos nazistas ou do notável jurista do nazismo Carl Schmitt? Pode uma juiza do Supremo Tribunal Federal se permitir tal leviandade ético-jurídica?
Gandra é contundente:”Se eu tiver a prova material do crime, não preciso da teoria do domínio do fato para condenar". Essa prova foi desprezada. Os juízes ficaram nos indícios e nas deduções. Adverte para a “monumental insegurança jurídica” que pode a partir de agora vigorar. Se algum subalterno de um diretor cometer um crime qualquer e acusar o diretor, a este se aplica a “teoria do domínio do fato” porque “deveria saber”. Basta esta acusação para condená-lo.
Outro notável é o jurista Antônio Bandeira de Mello, 77, professor da PUC-SP na mesma FSP do dia 22/11/2013. Assevera:”Esse julgamento foi viciado do começo ao fim. As condenações foram políticas. Foram feitas porque a mídia determinou. Na verdade, o Supremo funcionou como a longa manus da mídia. Foi um ponto fora da curva”.
Escandalosa e autocrática, sem consultar seus pares, foi a determinação do ministro Joaquim Barbosa. Em princípio, os condenados deveriam cumprir a pena o mais próximo possível das residências deles. “Se eu fosse do PT” – diz Bandeira de Mello – “ou da família pediria que o presidente do Supremo fosse processado. Ele parece mais partidário do que um homem isento”.
Escolheu o dia 15 de novembro, feriado nacional, para transportar para Brasília, de forma aparatosa num avião militar, os presos, acorrentados e proibidos de se comunicar.
José Genuino, doente e desaconselhado de voar, podia correr risco de vida. Colocou a todos em prisão fechada mesmo aqueles que estariam em prisão semi-aberta. Ilegalmente prendeu-os antes de concluir o processo com a análise dos “embargos infringentes”.
O animus condemnandi (a vontade de condenar) e de atingir letalmente o PT é inegável nas atitudes açodadas e irritadiças do ministro Barbosa. E nós tivemos ainda que defendê-lo contra tantos preconceitos que de muitas partes ouvimos pelo fato de sua ascendência afrobrasileira.
Contra isso, afirmo sempre:“somos todos africanos”porque foi lá que irrompemos como espécie humana. Mas não endossamos as arbitrariedades deste Ministro culto mas raivoso. Com o Ministro Barbosa a Justiça ficou sem as vendas porque não foi imparcial, aboliu a balança porque ele não foi equilibrado. Só usou a espada para punir mesmo contra os princípios do direito. Não honra seu cargo e apequena a mais alta instância jurídica da Nação.
Ele, como diz São Paulo aos Romanos:”aprisionou a verdade na injustiça”(1,18). A frase completa do Apóstolo, considero-a dura demais para ser aplicada ao Ministro.
Leonardo Boff foi professor de Etica na UERJ e escreveu Etica e Moral: em busca dos fundamentos, Vozes 2003.
 

A COALIZÃO - Reforma Política

A COALIZÃO


É resultado de uma ação conjunta de entidades, que no dia 28 de agosto de 2013, em reunião na CNBB,

aprovaram o manifesto e a proposta de projeto de lei de iniciativa popular, que tem como finalidade

desencadear uma campanha cívica, unificada e solidária, pela efetivação de imediata da Reforma Política

Democrática e Eleições Limpas.

A Coalizão reúne 44 entidades da sociedade civil, que entraram em consenso em favor de uma única

proposta de Reforma Política que possa unificar entidades da sociedade civil e amplas camadas do povo

brasileiro. Entre as entidades incluem-se a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), OAB (Ordem

dos Advogados do Brasil), o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), a Plataforma dos

Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, a Frente Parlamentar pela Reforma Política com

participação popular, a CUT (Central Única dos Trabalhadores), o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs

do Brasil), a UNE (União Nacional dos Estudantes), dentre outras1.

1 Assinam ainda: UBES (União Brasileira dos estudantes secundaristas), Contag (Confederação


Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), CNLB (Conselho Nacional do Laicato do Brasil),

Movimento Nacional Contra Corrupção e pela Democracia, Unasus (União Nacional dos Auditores

do Sistema Único de Saúde), IDES (Instituto de Desenvolvimento Sustentável), Criscor (Cristãos

Contra Corrupção), MST (Movimentos dos Trabalhadores sem Terra), Abramppe (Associação

Brasileira dos Magistrados Procuradores e Promotores Eleitorais), Confea (Conselho Federal de

Engenharia e Agronomia), IUMA (Instituto Universal de Marketing em Agribusiness), Instituto

Atuação, Aliança Cristã Evangélica Brasileira, CJP-DF (Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de

Brasília), Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), POM (Pontifícias Obras Missionárias), Visão

Mundial, Escola de Fé e Política /Campina Grande, CFF (Conselho Federal de Farmácia), CFESS

(Conselho Federal de Serviço Social), Cáritas Brasileira, MPA Brasil (Movimento dos Pequenos

Agricultores), SINPRO/ DF (Sindicato dos Professores no Distrito Federal), CTB/DF (Central dos

Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), Asbrale/DF (Associação Brasiliense das Empregadas

Domésticas), Igreja Batista em Coqueiral – Recife, Instituto Solidare – Pernambuco, SUAS (Sistema

único de Assistência social), Aliança Evangélica, CBJP (Comissão Brasileira de Justiça e Paz),

Semana Social Brasileira – CNBB, Via Campesina, MMC (Movimento de Mulheres Camponesas),

IBDCAP - (Instituto Brasileiro de direito e controle da administração pública), CSEM (Centro
Scalabriniano de estudos migratórios), CNTE (Confederação dos Trabalhadores em Educação).


No dia 3 de setembro de 2013, várias organizações da sociedade civil e parlamentares realizaram,
na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, ato público de constituição da Coalizão pela



Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, que expressa a unificação dos esforços e das propostas

dessas organizações na realização de uma reforma política que corrija as graves distorções do sistema

político brasileiro.

Principais pontos da proposta:


1. Proibição do financiamento de campanha por empresa. Instauração do financiamento democrático de

campanha, constituído do financiamento público e de contribuição de pessoa física, limitadas a R$ 700,00.

O total desta contribuição não poderá ultrapassar o limite de 40 % dos recursos públicos recebidos pelo

partido, destinados às eleições;

2. Adoção do sistema eleitoral do voto dado em listas pré-ordenadas, democraticamente formadas pelos

partidos e submetidas a dois turnos de votação, constituindo o sistema denominado “voto transparente”,

pelo qual o eleitor inicialmente vota no partido e posteriormente escolhe individualmente um dos nomes da

lista;

3. Garantia da alternância de gênero nas listas mencionadas no item anterior;

4. Regulamentação dos instrumentos da Democracia Direta ou Democracia Participativa, previstos no art.

14 da Constituição, de modo a permitir sua efetividade, reduzindo-se as exigências para a sua realização,

ampliando-se o rol dos órgãos legitimados para iniciativa de sua convocação, aumentando-se a lista

de matérias que podem deles ser objeto, assegurando-se financiamento público na sua realização e se

estabelecendo regime especial de urgência na tramitação no Congresso;

5. Modificação da legislação para fortalecer os partidos, para democratizar suas instâncias decisórias

especialmente na formação das listas pré-ordenadas, para impor programas partidários efetivos e

vinculantes, para assegurar a fidelidade partidária, para considerar o mandato como pertencente ao partido

e não ao mandatário;

6. Criação de instrumentos eficazes voltados aos segmentos sub-representados da população,

exemplificativamente afrodescendentes e indígenas, com o objetivo de estimular sua maior participação nas

instâncias políticas e partidárias;

7. Previsão de instrumentos eficazes para assegurar o amplo acesso aos meios de comunicação e impedir

que propaganda eleitoral ilícita, direta ou indireta, interfira no equilíbrio do pleito, bem como garantias do

pleno direito de resposta e acesso às redes sociais,


Entrega da Proposta do PL e do manifesto à Presidência da Câmara:
No dia 10 de setembro a Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, integrada por

diversas entidades, depois de coletar assinaturas de apoio à campanha de cerca de 130 parlamentares

daquela casa, entregaram o PL ao presidente Henrique Eduardo Alves (PMDB - RN). A proposta foi

protocolada com o número PL 6316/2013.


O projeto “Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”:
O Projeto de Lei defende a proposta de lei de iniciativa popular para a reforma política e tem como objetivo

afastar das eleições o abuso de poder econômico, racionalizar o sistema eleitoral, promover a inclusão

política das mulheres e demais grupos subrepresentados e favorecer o uso dos mecanismos da democracia

direta.


Mobilização:
A coleta de assinaturas está sendo realizada em coleta presencial (formulário) ou pela internet nos sites da

AVAAZ ou Eleições Limpas, que possui homologação automática com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

A Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas conclama, assim como já o



fizeram em outros momentos decisivos da vida nacional, o povo brasileiro para que em todo

o lugar, no bairro, município, associações, sindicatos, escolas, universidades, organizações

profissionais e religiosas, participe desta Campanha tanto os mais jovens como os mais

experientes, mulheres e homens, em prol do aperfeiçoamento da Democracia, na defesa de

uma REFORMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A Doença da Classe Média Brasileira

31/10/2013


A Doença da Classe Média Brasileira


A primeira vez que ouvi a Marilena Chauí bradar contra a classe média, chamá-la de fascista, violenta e ignorante, tive a reação que provavelmente a maioria teve: fiquei perplexo e tendi a rejeitar a tese quase impulsivamente. Afinal, além de pertencer a ela, aprendi a saudar a classe média. Não dá para pensar em um país menos desigual sem uma classe média forte: igualdade na miséria seria retrocesso, na riqueza seria impossível. Então, o engrossamento da classe média tem sido visto como sinal de desenvolvimento do país, de redução das desigualdades, de equilíbrio da pirâmide social, ou mais, de uma positiva mobilidade social, em que muitos têm ascendido na vida a partir da base. A classe média seria como que um ponto de convergência conveniente para uma sociedade mais igualitária. Para a esquerda, sobretudo, ela indicaria uma espécie de relação capital-trabalho com menos exploração.
Então, eu, que bebi da racionalidade desde as primeiras gotas de leite materno, como afirmou certa vez um filósofo, não comprei a tese assim, facilmente. Não sem uma razão. E a Marilena não me ofereceu esta razão. Ela identificou algo, um fenômeno, o reacionarismo da classe média brasileira, mas não desvendou o sentido do fenômeno. Descreveu “O QUE” estava acontecendo, mas não nos ofereceu o “PORQUE”. Por que logo a classe média? Não seria mais razoável afirmar que as elites é que são o “atraso de vida” do Brasil, como sempre foi dito? E mais, ela fala da classe média brasileira, não da classe média de maneira geral, não como categoria social. Então, para ela, a identificação deste fenômeno não tem uma fundamentação eminentemente filosófica ou sociológica, e sim empírica: é fruto da sua observação, sobretudo da classe média paulistana. E por que a classe média brasileira e não a classe média em geral? Estas indagações me perturbavam, e eu ficava reticente com as afirmações de dona Marilena.
Com o passar do tempo, porém, observando muitos representantes da classe média próximos de mim (coisa fácil, pois faço parte dela), bem como a postura desta mesma classe nas manifestações de junho deste ano, comecei lentamente a dar razão à filósofa. A classe média parece mesmo reacionária, talvez não toda, mas grande parte dela. Mas ainda me perguntava “por que” a classe média, e “por que” a brasileira? Havia um elo perdido neste fenômeno, algo a ser explicado, um sentido a ser desvendado.
Então adveio aquela abominável reação de grande parte da categoria médica – justamente uma categoria profissional com vocação para classe média - ao Programa Mais Médicos, e me sugeriu uma resposta. Aqueles episódios me ajudaram a desvendar a espuma. Mas não sem antes uma boa pergunta! Como pode uma categoria profissional pensar e agir assim, de forma tão unificada, num país tão plural e tão cheio de nuanças intelectuais e políticas como o nosso? Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais. Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma. Então deveria haver outra interpretação para isto.
Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil. Então, este pensamento único provavelmente fora forjado pelas longas provações por que passa um estudante de medicina até se tornar um profissional: passar no vestibular mais concorrido do Brasil, fazer o curso mais longo, um dos mais difíceis, que tem mais aulas práticas e exigências de estrutura, e que está entre os mais caros do país. É um feito se formar médico no Brasil, e talvez por isto esta formação, mais do que qualquer outra, seja uma celebração do mérito. Sendo assim, supõe-se, não se pode aceitar que qualquer um que não demonstre ter tido os mesmos méritos, desfrute das mesmas prerrogativas que os profissionais formados aqui. Então, aquela reação episódica, e a meu ver descabida, da categoria médica, incompreensível até para o resto da classe média, era, na verdade, um brado pela meritocracia. 
A minha resposta, então, ao enigma da classe média brasileira aqui colocado, começava a se desvelar: é que boa parte dela é reacionária porque é meritocrática; ou seja, a meritocracia está na base de sua ideologia conservadora. 
Assim, boa parte da classe média é contra as cotas nas universidades, pois a etnia ou a condição social não são critérios de mérito; é contra o bolsa-família, pois ganhar dinheiro sem trabalhar além de um demérito desestimula o esforço produtivo; quer mais prisões e penas mais duras porque meritocracia também significa o contrário, pagar caro pela falta de mérito; reclama do pagamento de impostos porque o dinheiro ganho com o próprio suor não pode ser apropriado por um Governo que não produz, muito menos ser distribuído em serviços para quem não é produtivo e não gera impostos. É contra os políticos porque em uma sociedade racional, a técnica, e não a política, deveria ser a base de todas as decisões: então, deveríamos ter bons gestores e não políticos. Tudo uma questão de mérito.
Mas por que a classe média seria mais meritocrática que as outras? Bem, creio que isto tem a ver com a história das políticas públicas no Brasil. Nós nunca tivemos um verdadeiro Estado do Bem Estar Social por aqui, como o europeu, que forjou uma classe média a partir de políticas de garantias públicas. O nosso Estado no máximo oferecia oportunidades, vagas em universidades públicas no curso de medicina, por exemplo, mas o estudante tinha que enfrentar 90 candidatos por vaga para ingressar. O mesmo vale para a classe média empresarial, para os profissionais liberais, etc. Para estes, a burocracia do Estado foi sempre um empecilho, nunca uma aliada. Mesmo a classe média estatal atual, formada por funcionários públicos, é geralmente concursada, portanto, atingiu sua posição de forma meritocrática. Então, a classe média brasileira se constituiu por mérito próprio, e como não tem patrimônio ou grandes empresas para deixar de herança para que seus filhos vivam de renda ou de lucro, deixa para eles o estudo e uma boa formação profissional, para que possam fazer carreira também por méritos próprios. Acho que isto forjou o ethos meritocrático da nossa classe média. 
Esta situação é bem diferente na Europa e nos EUA, por exemplo. Boa parte da classe média europeia se formou ou se sustenta das políticas de bem estar social dos seus países, estas mesmas que entraram em colapso com a atual crise econômica e tem gerado convulsões sociais em vários deles; por lá, eles vão para as ruas exatamente para defender políticas anti-meritocráticas. E a classe média americana, bem, esta convive de forma quase dramática com as ambiguidades de um país que é ao mesmo tempo das oportunidades e das incertezas; ela sabe que apenas o mérito não sustenta a sua posição, portanto, não tem muitos motivos para ser meritocrática. Se a classe média adoecer nos EUA, vai perder o seu patrimônio pagando por serviços privados de saúde pela absoluta falta de um sistema público que a suporte; se advém uma crise econômica como a de 2008, que independe do mérito individual, a classe média perde suas casas financiadas e vai dormir dentro de seus automóveis, como se via à época. Então, no mundo dos ianques, o mérito não dá segurança social alguma.
As classes brasileiras alta e baixa (os nossos ricos e pobres) também não são meritocráticas. A classe alta é patrimonialista; um filho de rico herda bens, empresas e dinheiro, não precisa fazer sua vida pelo mérito próprio, portanto, ser meritocrata seria um contrassenso; ao contrário, sua defesa tem que ser dos privilégios que o dinheiro pode comprar, do direito à propriedade privada e da livre iniciativa. Além disso, boa parte da elite brasileira tem consciência de que depende do Estado e que, em muitos casos, fez fortuna com favorecimentos estatais; então, antes de ser contra os governos e a política, e de se intitular apolítica, ela busca é forjar alianças no meio político. 
Para a classe pobre o mérito nunca foi solução; ela vive travada pela falta de oportunidades, de condições ou pelo limitado potencial individual. Assim, ser meritocrata implicaria não só assumir que o seu insucesso é fruto da falta de mérito pessoal, como também relegar apenas para si a responsabilidade pela superação da sua condição. E ela sabe que não existem soluções pela via do mérito individual para as dezenas de milhões de brasileiros que vivem em condições de pobreza, e que seguramente dependem das políticas públicas para melhorar de vida. Então, nem pobres nem ricos tem razões para serem meritocratas. 
A meritocracia é uma forma de justificação das posições sociais de poder com base no merecimento, normalmente calcado em valências individuais, como inteligência, habilidade e esforço. Supostamente, portanto, uma sociedade meritocrática se sustentaria na ética do merecimento, algo aceitável para os nossos padrões morais. 
Aliás, tenho certeza de que todos nós educamos nossos filhos e tentamos agir no dia a dia com base na valorização do mérito. Nós valorizamos o esforço e a responsabilidade, educamos nossas crianças para serem independentes, para fazerem por merecer suas conquistas, motivamo-as para o estudo, para terem uma carreira honrosa e digna, para buscarem por méritos próprios o seu lugar na sociedade.
Então, o que há de errado com a meritocracia, como pode ela tornar alguém reacionário?
Bem, como o mérito está fundado em valências individuais, ele serve para apreciações individuais e não sociais. A menos que se pense, é claro, que uma sociedade seja apenas um agregado de pessoas. Então, uma coisa é a valorização do mérito como princípio educativo e formativo individual, e como juízo de conduta pessoal, outra bem diferente é tê-lo como plano de governo, como fundamento ético de uma organização social. Neste plano é que se situa a meritocracia, como um fundamento de organização coletiva, e aí é que ela se torna reacionária e perversa. 
Vou gastar as últimas linhas deste texto para oferecer algumas razões para isto, para mostrar porquê a meritocracia é um fundamento perverso de organização social. 
a) A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.
b) A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos. 
c) A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas. Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.
d) A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem. O Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado. O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mudo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam. 
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser. Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.
e) A meritocracia escamoteia as reais operações de poder. Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário. Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico; bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante. Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política. Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política. Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.
e) A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.
f) A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma literatura calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas. Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq. 
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.
g) Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho. O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante. Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.
Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos. Assim, embora eu tenda a concordar com a tese da Marilena Chauí sobre a classe média brasileira, proponho aqui uma troca de alvo. Bradar contra a classe média, além de antipático pode parecer inútil, pois ninguém abandona a sua condição social apenas para escapar ao seu estereótipo. Não se muda a posição política de alguém atacando a sua condição de classe, e sim os conceitos que fundamentam a sua ideologia. 
Então, prefiro combater conceitos, neste caso, provavelmente o conceito mais arraigado na classe média brasileira, e que a faz ser o que é: a meritocracia.
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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

STF, achincalhes, chicanas e deboches

STF, achincalhes, chicanas e deboches

Jornal Brasil de Fato
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Para o bem da democracia, juízes deveriam ser levados ao banco dos réus
19/11/2013
Por Alipio Freire
O achincalhe, a chicana, o deboche do Supremo Tribunal Federal (STF), frente às leis que regem (ou, pelo menos, deveriam reger) suas decisões, parecem não ter limites. As prisões ilegais dos réus do processo conhecido — não por acaso incorretamente — pela alcunha de “mensalão”, além de um atropelo às leis vigentes, segue a batida das piores tradições golpistas da direita brasileira: foi decretada em vésperas de feriado prolongado, quando a dispersão das organizações e movimentos populares e democráticos impede toda reação contra o ato.
Assim foi com o Ato Institucional Número Cinco — AI-5 (numa sexta-feira de meados de dezembro — dia 13); assim tentou o fraudador da Constituição — doutor Nelson Jobim, então ministro da Defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na passagem do ano de 2009 para 2010, contra o Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), do também então ministro Paulo Vannuchi, hoje — com todo mérito — eleito membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
Toda vez que uma decisão importante e de interesse da maioria for tomada às vésperas de um feriado longo, em longínquos dias de dezembro, ou em qualquer momento de desmobilização, estejamos alertas: trata-se de um golpe contra os interesses da maioria da sociedade.
Aprendamos — mas jamais repitamos.Ou seja, método tipicamente da direita, tão velho quanto sonhar agachado — há quem confunda a serventia da posição e a use para seus devaneios, sendo que o presidente do STF — doutor Joaquim Barbosa e a maioria dos seus pares parecem especializados neste metier. Enfi m, existem sonhos de todo tipo e qualidade...
Há os que sonham, por exemplo, com a impunidade — exatamente por isto se agacham céleres perante qualquer possibilidade de ascensão que vislumbrem, tornando-se muitas vezes vassalos mais realistas que seus senhores.
A Corte Suprema do país é isto. E não se trata apenas de mudar os nomes que a compõem, embora de imediato isto fosse o desejável. Quem sabe um impeachment. Por essas e outras, ou abrimos através de uma séria reforma política essa caixa-preta, ou as nossas conquistas democráticas retroagirão. Os venais devem ser punidos. Estejam nos executivos, nos legislativos ou nos judiciários — mas punidos na forma da lei.
E a independência dos Três Poderes jamais deve servir de pretexto para a omissão e a crítica de uns sobre os outros. Lembram-se das fanfarronadas do doutor Gilmar Mendes, quando presidente do STF, em seus comentários sobre decisões do Executivo e do Legislativo?
Aliás, assusta-nos a presteza com que o atual ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça (PT), tem atendido e cumprido as ordens emanadas de certos setores da escancarada oposição de direita, ultradireita e de pusilânimes em geral. E não apenas no que diz respeito à disponibilização de forças federais frente aos mais tolos conflitos sociais.
No presente caso, é imperdoável a postura do ministro Cardozo frente à “fuga para a Itália” do ex-diretor do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, entrando imediatamente com o pedido de sua extradição junto ao governo de Roma. O caso Henrique Pizzolato (cidadão com dupla nacionalidade) é uma das maiores aberrações do processo em curso: todos sabemos (é mais que público) que o doutor Joaquim Barbosa ocultou cínica e despudoradamente as provas de inocência do réu, que constavam do processo.
Ora, o ministro Cardozo teria feito melhor para a nossa democracia, se houvesse contestado o doutor Barbosa e — pelo menos — forçado o esclarecimento da questão. Mas, se for possível o julgamento do senhor Pizzolato por um tribunal italiano (como ele pretende), a desmoralização do STF, do doutor Barbosa e de seus parceiros de venalidade, ganhará dimensão internacional. E, junto com a caterva, irá água abaixo o nome do ministro Cardozo...
A rigor, o comportamento do STF (com as honrosas exceções de alguns juízes), coadjuvado pela grande mídia comercial, não é o da busca da Justiça — papel defi nido pela Constituição. Ao contrário: é a busca da estigmatização e linchamento dos réus do “mensalão” que, de fato, enquanto tal jamais existiu(*), embora outros atos ilícitos tenham sido cometidos, como admitem mesmo alguns dos réus. Em qualquer democracia ou república, o linchamento é o oposto de toda Justiça. E aqui, convêm algumas considerações e perguntas:
Exceto o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que tomou atitude firme e pública durante seu Congresso no final da semana passada, onde andam as forças de esquerda, os partidos e demais entidades democráticas deste país? Pretendem ganhar eleições ou barganhar cargos à custa mesmo da injustiça e arbítrio das forças saudosas da ditadura? A manifestação da Executiva Nacional do próprio Partido dos Trabalhadores — ao qual pertenceram vários dos réus, foi pífia, de tão tímida.
Mas, deixemos de lado as instâncias formais e subalternas. Reportemo-nos diretamente ao poder de fato do PT, que migrou e se metamorfoseou ambulante e sucessivamente do grupo de “compadres sindicalistas”, para as Caravanas da Cidadania; destas para o Instituto da Cidadania; passeou em seguida pelos aparelhos da Presidência da República e, hoje, se manifesta através do Instituto Lula, onde senta praça.
Onde foi parar toda essa gente? Esperam se ver livres de companhias hoje “incômodas”, das quais fi eram todo tipo de uso e agora descartam? Temem se chocar com a direita que integra as bases de governabilidade dos seus sucessivos governos? Sim, realmente — com a política que desenvolveram acumpliciados com alguns dos hoje réus, fica difícil sequer se referir ao julgamento do ex-presidente Fernando Collor de Mello, cujo processo jaz em alguma gaveta há mais de 20 anos, “à espera de ser julgado”.
E as correntes do PT? Até o momento, exceto o líder de O Trabalho, Markus Sokol, os representantes das demais tendências não disseram a que vieram. Pensam se livrar de alguns camaradas que nas disputas internas se utilizam de métodos muitas vezes da direita para abater seus adversários? Vão agir como alguns deles que hoje criticam e até execram, mas aos quais já se aliaram em diversos momentos?
Algo precisa ser dito, sem rebuços. Independentemente de qualquer crítica que tenhamos (e temos muitas, algumas graves) ou venhamos a ter a qualquer dos réus petistas, todos eles se comportaram com uma dignidade exemplar: em nenhum momento hesitaram em assumir para si as responsabilidades perante as acusações pelas quais respondem. Jamais sequer cogitaram em lançar mão do espúrio direito da “delação premiada”, que transforma cada cidadão brasileiro num potencial dedo duro. Se há algum outro petista (dirigente ou não) envolvido no assunto, nunca saberemos — pelo menos, através desses homens presos.
Às vezes nos parece haver um certo júbilo de uns e outros, frente a essas prisões e linchamentos. Algo como alguns personagens de esquerda que comemoraram o fi m da antiga União Soviética — a Queda do Muro de Berlim, promovida pela direita... E vejam no que deu. Isto acontece sempre que nos aliamos ou nos omitimos perante o inimigo. Diria Dercy Gonçalves: a perestroika da vizinha está presa na gaiola. Mas, a omissão, a covardia, o permanente “senso de oportunidade” têm sempre um preço. Como escreveu em mensagem sobre o assunto, numa lista, a nossa companheira Eliete, “Àqueles que não se rebelam contra as injustiças: amanhã será tua vez!”.
Mais que Dirceu, Genoíno, Delúbio e outros, mais do que o PT, e muito mais que qualquer divergência política ou de métodos (estas últimas, as mais graves); mais que os resultados eleitorais de 2014 — ou a não conquista do tão almejado cargo de assessor de porteiro na Embaixada do Brasil em Uganda perseguido por tantos; mais que o fato de não petistas também estarem a ser igualmente punidos de forma arbitrária; o que está em jogo são conquistas democráticas conseguidas com o sangue e o suor de milhões de brasileiros. Silenciar neste momento é capitular. Perder uma eleição é uma derrota conjuntural. Perder conquistas democráticas é uma derrota estrutural. A defesa das nossas instituições democráticas é um dever de todo e toda cidadã.
(*) O termo “mensalão” foi criado pela grande mídia comercial, para designar um suposto crime de corrupção que implicaria em um pagamento mensal regular que seria feito por dirigentes petistas a diversos parlamentares federais, para que apoiassem/ votassem as propostas do Partido dos Trabalhadores no Congresso. Já foi sobejamente provado e aceito que tal prática jamais aconteceu. A insistência no uso da expressão faz parte de uma campanha de criminalização e difamação dos réus ora processados.
Alipio Freire é jornalista, escritor e membro do conselho editorial do Brasil de Fato.
 

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A dívida brasileira e o paradoxo da desigualdade

A dívida brasileira e o paradoxo da desigualdade

Jornal Brasil de Fato

“A dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB”, destaca a auditora fiscal Maria Lúcia Fattorelli
26/11/2013
Do IHU-on line
O endividamento público de vários países gerou o que a coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli, denomina de “sistema da dívida”, ou seja, a “utilização do endividamento público às avessas; em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado”.
Segundo ela, a dívida pública é, atualmente, “um dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder”. E dispara: “O Sistema da Dívida opera de modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando diversos mecanismos que viabilizam esse esquema”.
Na entrevista a seguir, a auditora fiscal também comenta a dívida dos estados brasileiros, a qual foi gerada de “forma espúria” e “passou a crescer em escala exponencial.
O que é Sistema da Dívida? Como e por que ele se reproduz em vários países do mundo?
Maria Lúcia Fattorelli – Escolhemos o tema “Sistema da Dívida” para nortear todos os debates do seminário internacional que realizamos na semana passada devido à importância da percepção da atuação desse esquema em vários países.
O “Sistema da Dívida” corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado.
Esse esquema funciona por meio de diversos mecanismos que geram dívidas, na maioria das vezes sem qualquer contrapartida, e promovem seu contínuo crescimento. Para operar, tal sistema conta privilégios legais, políticos, econômicos e também com a grande mídia, além de contar com o suporte dos organismos financeiros internacionais para impor medidas que favorecem a atuação do “Sistema da Dívida”. O livro Auditoria Cidadã da Dívida: Experiências e Métodos, que lançamos durante o seminário internacional, detalha tais mecanismos, cabendo ressaltar os esquemas de “salvamento de bancos”, a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas e a aplicação de “Planos de Ajuste Fiscal”, que se fundamentam em cortes orçamentários, privatizações e demais reformas liberais para destinar os recursos ao “Sistema da Dívida”
Como o Sistema da Dívida funciona internacionalmente? Todos os países são afetados por esse sistema?
As experiências de auditoria já realizadas têm demonstrado que o “Sistema da Dívida” segue um modus operandi semelhante em diversos países, passando por fases permeadas de fatos graves, tais como: geração de dívidas sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade; aplicação de mecanismos meramente financeiros (taxas de juros abusivas, atualização monetária automática, cobrança de comissões e taxas etc.), que fazem a dívida crescer continuamente, também sem qualquer contrapartida real; refinanciamentos que empacotam dívidas privadas e outros custos que não correspondem à entrega de recursos ao estado, provocando elevação ainda maior no volume do endividamento e beneficiando unicamente o setor financeiro privado nacional e internacional; utilização do endividamento gerado dessa maneira como justifi cativa para a implementação de medidas macroeconômicas determinadas pelos organismos internacionais (principalmente FMI e Banco Mundial) contrárias aos interesses coletivos e que mais uma vez beneficiam unicamente o mesmo setor financeiro, tais como privatizações, reforma da previdência, reforma trabalhista, reforma tributária, medidas de controle inflacionário, liberdade de movimentação de capitais etc.
A dívida pública é um dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder. Por isso, o endividamento é um problema presente em quase todos os países capitalistas. Além de atentar para o volume da dívida, é preciso observar o valor dos juros que dirão o peso dessa dívida para cada país. Nesse sentido, o endividamento brasileiro é o mais oneroso do mundo, devido às elevadíssimas taxas de juros.
Qual a situação da dívida pública brasileira? Que percentual do orçamento federal é destinado ao pagamento da dívida?
Os números da dívida pública brasileira indicam que já estamos em situação de crise da dívida. Em 31/12/2012, a Dívida Externa alcançou 442 bilhões de dólares (R$ 884 bilhões a R$ 2,00). É verdade que a maior parte dessa dívida é privada, porém, possui a garantia do governo brasileiro e, dessa forma, constitui uma obrigação que deve ser computada em sua integralidade.
Por sua vez, a chamada Dívida Interna atingiu o patamar de R$ 2,8 trilhões em 31/12/2012. A maior parte dessa dívida está nas mãos de bancos nacionais e internacionais. Dessa forma, a dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB.
Como essa dinâmica ocorre internamente entre os estados brasileiros e a União? Qual é o estado brasileiro mais endividado?
O Sistema da Dívida se reproduz também internamente, tendo em vista que, no caso dos estados, quase toda a dívida não possui contrapartida real e cresce a partir de mecanismos meramente financeiros.
A maior parcela da dívida dos estados corresponde ao refinanciamento feito pelo governo federal a partir do final da década de 1990 (com base na Lei nº 9.496/97). Esse refinanciamento englobou passivos de bancos estaduais que seriam privatizados (PROES), ou seja, transformou parcelas de diversas naturezas em dívida pública dos estados. Tal fato evidencia a ausência de contrapartida de tais “dívidas” que foram geradas em processo não transparente e questionável sob todos os aspectos e comprova a atuação do “Sistema da Dívida”.
Além disso, existem vários questionamentos acerca da origem da dívida refinanciada, conforme detalhamos no livro Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados, que lançamos em maio deste ano. Além de gerada de forma espúria, essa dívida passou a crescer em escala exponencial devido à extorsiva remuneração nominal cobrada pelo governo federal, correspondente à incidência de atualização monetária mensal automática calculada com base na variação do IGP-DI, cumulativa com a incidência de juros de 6 a 9% ao ano.
Essa remuneração nominal tem sido tão abusiva que diversos entes federados estão contraindo empréstimos junto ao Banco Mundial e bancos privados internacionais para pagar ao governo federal. Uma verdadeira aberração e ofensa ao Federalismo, além do risco de transferir a crise financeira para o interior do país. Isso porque tais bancos internacionais exigem, entre outras condicionalidades, a transformação do sistema previdenciário estadual para a modalidade de fundos de pensão de natureza privada, que investem fortemente em derivativos – papéis podres que provocaram a crise financeira nos Estados Unidos e Europa. O estado brasileiro mais endividado é São Paulo.
Quais são os impactos sociais e econômicos do Sistema da Dívida?
Como antes mencionado, o Sistema da Dívida opera de modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando diversos mecanismos que viabilizam esse esquema.
Ao fi nal, o custo da dívida pública é transferido diretamente para a sociedade, em particular para os mais pobres, tanto por meio do pagamento de elevados tributos incidentes sobre tudo o que consomem, quanto pela ausência ou insuficiência de serviços públicos a que têm direito – saúde, educação, assistência social, previdência – e, ainda, entregando patrimônio público mediante as privatizações e a exploração ilimitada de riquezas naturais, com irreparáveis danos ambientais, ecológicos e sociais. O custo social é imenso.
O gráfico do orçamento federal evidencia que, na medida em que absorve quase a metade dos recursos, todas as áreas sociais ficam prejudicadas, o que explica o paradoxo inaceitável que existe em nosso país: sétima economia mundial e um dos países mais injustos do mundo, desrespeitando direitos humanos fundamentais, como denuncia a inaceitável classificação em 85º lugar segundo o IDH medido pela ONU.
É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A auditoria é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo. O papel da cidadania é de suma relevância, pois além de conhecer o processo, deve procurar incidir nessa realidade. Não pode estar passiva diante do contínuo e crescente escoamento de recursos públicos orçamentários, acompanhado da entrega de riquezas nacionais de forma infame.
É necessário fundamentar – com documentos e provas – as denúncias desse vergonhoso esquema que tem submetido países e povos a uma escravidão incompatível com a situação econômica real, suficiente para garantir vida digna e abundante para todas as pessoas. Assim, a auditoria cidadã se converte em uma ferramenta de luta social. Convido a todos a divulgar nossas publicações e participar dos Núcleos da Auditoria Cidadã.
Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública –CAIC- no Equador em 2007-2008. É autora de Auditoria da dívida externa. Questão de Soberania (Contraponto Editora, 2003).
Foto: Agência Senado
 

NO BRASIL, UMA NOVA CULTURA POLÍTICA E DE PROTESTO

NO BRASIL, UMA NOVA CULTURA POLÍTICA E DE PROTESTO

12 setembro, 2013 - 18:41 — Neto

“Há um movimento urbano que caminha, e espero que o MST o acompanhe”, afirma Raúl

Zibechi, escritor uruguaio
12/09/2013

Por Waldo Lao,

de San Cristóbal de las Casas, Chiapas (México)

“O velho precisa aprender com o novo”. A opinião é do escritor e jornalista uruguaio Raúl

Zibechi, especialista em processos organizativos de movimentos sociais latino-americanos,

se referindo a atual conjuntura da luta popular no Brasil após as manifestações de junho.

Para ele, que esteve presente na Escuelita Zapatista, em Chiapas (México), existe, em

boa parte da luta social, uma rejeição forte em relação à aliança entre a burguesia e a elite

sindicatal no país. “A vida dos pobres tem melhorado, mas não o seu lugar na estrutura”,

ressalta.

Confira a entrevista.
Brasil de Fato – Raúl, você apresentará em várias universidades na Cidade
do México seu mais recente livro, chamado Brasil potência. Como você vê as


manifestações que vêm ocorrendo desde junho no Brasil?

Raúl Zibechi – Maravilhosas. Parece-me que pela primeira vez desde 1989, de maneira


muito superior às manifestações contra Fernando Collor de Mello, em 1992, o Brasil

presencia uma grande mobilização urbana. Tenho a impressão de que o núcleo de

resistência se move do campo para a cidade. Eu acho que há uma mudança, uma grande

mudança política no Brasil, e isso é um acumulado da resistência à construção da usina

de Belo Monte e da resistência do Movimento Passe Livre (MPL), que se organizam em

dezenas de cidades.
E as críticas que diziam que lutavam por apenas “20 centavos”?

Não, não. De forma alguma. É algo muito mais profundo. É possível dizer que é uma luta

contra o consenso lulista, entendido como a aliança das elites que gerou Lula ou o PT de

gênero, que consiste em uma integração da elite sindical e da administração petista do

aparato de governabilidade. Há uma rejeição forte em relação a isso. A vida dos pobres

tem melhorado, mas não o seu lugar na estrutura; são pobres, comem melhor, vestem-se

melhor, mas o seu lugar estrutural continua sendo a precariedade, que hoje se manifesta

no transporte, dentre outras coisas.

Então eu estou muito feliz com essa série de movimentos que ocorreram. Claro que, agora,

os protestos caíram, mas imagine os núcleos do MPL no Brasil, em São Paulo ou Rio de

Janeiro, grupos pequenos de 20 pessoas, no máximo, fortaleceram-se.
Como podemos definir estas novas manifestações, este algo “novo” ?

Creio que o que está nascendo no Brasil é uma nova cultura política, ou uma nova cultura

de protesto, que o MPL encarna de maneira muito clara, a partir da horizontalidade, da

autonomia, de um apartidarismo que não é antipartidarismo, e o federalismo. Pareceme

que é a primeira vez que isso ocorre, desde que o MST renovou a cultura política

brasileira no início dos anos 1980, renovando a cultura de lutas, com os assentamentos,

acampamentos, ocupando, resistindo, produzindo, com todo um estilo.

Agora, isso se manifesta nas áreas urbanas, onde os jovens se formaram de outra

maneira, onde há por exemplo uma cultura do Hip Hop, uma cultura dos grupos

autônomos. Essa cultura política do MST, da qual vêm muitos deles, enraizada nas

cidades, deu outra coisa, distinta do MST, nem melhor, nem pior, senão diferente, que já

tem o seu próprio caminho; já não são dependentes do apoio do MST. Há um movimento

urbano que caminha, e espero que o MST o acompanhe; eu creio que sim.
Como é que se encaixam esses movimentos sociais com essas novas

manifestações?

Olha, vou tocar em um tema muito crítico que depois lhe contextualizarei. No dia 24 de

junho, em plena onda de manifestações, acontece a chacina da Maré, em Nova Holanda,

com 11 mortos pelo BOPE. Em 11 de julho, quando os sindicatos fazem sua pauta de

reivindicações, não mencionam a questão da militarização, não mencionam a chacina da

Maré. É uma pauta de reivindicações basicamente corporativa. Eu penso que a cultura

sindical tradicional, especialmente os sindicatos que hoje lutam, como a Conlutas e a

Intersindical, necessitam se vincular a esses novos movimentos. Assim com também

deveria fazê-lo o MST, que eu acho que é o único que tenta.

Do meu ponto de vista e com a maior humildade, creio que o MST foi o movimento mais

importante da América do Sul. Todos temos aprendido e seguiremos aprendendo dele, mas

hoje é importante potencializar essas lutas. O MST está em condições de se relacionar,

de aprender com essa nova cultura política da juventude urbana; creio que pode fazê-lo,

porque possui a ética de luta anticapitalista da mesma maneira que o MPL e esses outros

movimentos também possuem. Eles estão tensionando um núcleo duro do capitalismo, que

é a acumulação por espoliação urbana, na qual se enquadram as megaobras da Copa do

Mundo e dos Jogos Olímpicos, o sistema de transporte excludente que possui o Brasil e

etc. Portanto, há um desafio, que não é fácil assumir; sempre o novo questiona o velho: eu

sou velho e o novo me questiona. Devemos aprender com este “novo”.
Em seu livro Pobreza e Política há uma frase que eu acho muito interessante, você


escreve: “A América Latina é um laboratório de resistências sociais e, paralelamente,

também é um laboratório de programas para aplicar à insurgência social.” Poderia

nos falar um pouco sobre o tema das políticas sociais assistencialistas?

Olha, tenho visto isto em muitas comunidades hoje em dia: você tem uma comunidade

zapatista e ao lado uma comunidade do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que tem

casas de alvenaria, aparentemente muito bonitas. As políticas sociais são uma forma de

dividir as pessoas e acalmá-las. No caso do Brasil, existe uma gigantesca política social, o

Bolsa Família por exemplo, que chega a milhões de famílias; sem este programa o Brasil

estaria vivenciando um conflito social muito forte.

As políticas sociais surgem para controlar os pobres, deve-se entendê-las a partir desse

ponto de vista. É bom que o Estado dê dinheiro aos pobres, mas o que deve dar, como

disse Hugo Chávez, é poder: para combater a pobreza os pobres têm que ter poder. Aqui

está, a meu ver, uma compreensão equivocada de boa parte da esquerda do continente

de ver as políticas sociais como conquistas, quando são, na verdade, laboratórios de

cooptação de pobres. Mas as políticas sociais também têm limites muito graves e agora

nos deparamos com este novo desafio. Agora que sabemos que as políticas sociais são

limitadas para mudar a estrutura do problema.

Bom, sabemos que os governos progressistas são muito melhores do que os governos

conservadores, mas eles têm sérios limites e esses limites não vão ser quebrados pelos

velhos movimentos ou sindicatos, mas sim por uma nova agenda. O que acontece é que

quando os jovens saem às ruas já não saem disciplinados como anteriormente, saem de

outra maneira, e isso choca, às vezes incomoda; é claro que a direita se utiliza disso, mas

esse é um risco que sempre corremos.

Creio que estamos em uma nova fase e o Brasil é um exemplo disso. Estamos em uma

nova fase em todos os lugares. No Chile há uma nova geração de movimentos sociais,

com os estudantes, com os Mapuche. No Peru temos uma nova geração também, a

resistência à mineração em Conga, os guardiões dos lagos etc. Nesse terreno estamos

diante de uma nova situação e isso é para se alegrar e para ver como aprendemos, como

nos reajustamos a esta nova situação.
Se com a aplicação dessas políticas alguns movimentos perdem espaço, então,

quais estão ganhando?

Bem, quando se trata de movimentos, devemos ver de quem estamos falando. Falando

dos novos movimentos, refiro-me ao MPL, aos Comitês da Copa, aos sem-teto, aos

movimentos urbanos.Eles estão ganhando uma compreensão do que seria o agronegócio

urbano, pois os megaprojetos são o agronegócio urbano, aqui é onde vem o novo. Imagine

se favelados começam a tomar as ruas. Você pode imaginar isso? Eu acho que seria

quase uma guerra, mas apenas a classe média tem o direito de sair às ruas, os sindicatos,

os sem-terra. O que acontecerá quando você deixar sair os favelados? Eles não vão sair

em filas como o MST, vão sair de outra forma, porque é outra cultura. A cultura política dos

favelados é aquela em que não se tem nada a perder, a não ser suas correntes.

Uma jornalista brasileira disse recentemente que quando há manifestações na avenida

Paulista, a polícia responde com gás e balas de borracha, mas quando há manifestações

na favela, há balas de verdade. Isto demonstra que são dois espaços diferentes. Temos

que escolher, sem cálculos mesquinhos, o que eu perco ou o que ganho, de que lado

estamos.Isso é um pensamento de um revolucionário. Onde me coloco? Se não estamos

lá, estamos deixando órfãos de políticas revolucionárias os favelados .
E para terminar Raul, conte-nos um pouco sobre sua experiência na Escuelita

Zapatista. O que é liberdade segundo os zapatistas?
Bem, a liberdade para os zapatistas é a opção pela revolução por um mundo novo. O

que eu vi foram muitas comunidades com uma grande força interior, com uma decisão

de ir até o fim, isso eu vou deixar bem claro, eles derrotaram as políticas sociais. De uma

comunidade de 100 famílias, restaram apenas 15 famílias zapatistas. Existem outras

comunidades que são inteiras zapatistas. Outras que se perderam. Há de tudo. É o preço a

se pagar para superar, neutralizar e derrotaras políticas sociais assistencialistas. Deve ter

sido muito difícil para eles, mas por isso estamos aqui. O que eu vi, um poder autônomo,

uma economia autônoma, eles são autossuficientes, sim, na pobreza, mas eles comem,

educam-se, cuidam de sua saúde e defendem seu território sem o apoio do Estado.

Têm seus campos de milho, café, feijão, gado; têm pequenas vendas cooperativas nas

comunidades zapatistas, onde compram o que não podem produzir: sal, óleo, açúcar,

sabão; não têm que ir para o mercado capitalista. O que está lá é uma outra maneira de se

organizar socialmente, uma revolução.
Tradução e colaboração: Fábio Alkmin.

Raul Zibéchi é escritor e jornalista. Seu mais recente livro é Brasil potência: entre a


integração regional e um novo imperialismo, editora Consequência, Rio de Janeiro, 2012.