sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A importância da imaginação pós-capitalista.

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Quarta, 28 de agosto de 2013

A importância da imaginação pós-capitalista. 

Entrevista com DAVID HARVEY
Da habitação aos salários, David Harvey diz que examinar as contradições do capitalismo pode apontar o caminho para 
um mundo alternativo.
A reportagem é de Ronan Burtenshaw e Aubrey Robinson, publicada no sítio Red
Pepper, 22-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Há cinco anos no próximo mês, a Lehman Brothers pediu a maior falência da história
dos Estados Unidos. O seu colapso apontou para o início da Grande Recessão –
a mais substancial crise histórica mundial do capitalismo desde a Segunda Guerra
Mundial. Como devemos entender os fundamentos desse sistema agora em crise?
E, à medida que ele trava guerra contra as pessoas que trabalham sob o pretexto da
austeridade, como podemos imaginar um mundo para além dele?
Poucos foram tão influentes em responder a essas perguntas quanto o geógrafo marxista
David Harvey.
Eis a entrevista.
Você está trabalhando em um novo livro neste momento, The Seventeen
Contradictions of Capitalism [As 17 contradições do capitalismo]. Por que o foco
nas suas contradições?
A análise do capitalismo sugere que há contradições significativas e fundamentais.
Periodicamente, essas contradições saem do controle e geram uma crise. Nós
acabamos de passar por uma crise, e eu acho que é importante perguntar quais foram
as contradições que nos levaram a isso. Como podemos analisar a crise em termos de
contradições? Um dos grandes ditados de Marx era que a crise é sempre o resultado das
contradições subjacentes. Portanto, temos que lidar com elas em si mesmas, ao invés de lidar com os seus resultados.
Uma das contradições em que você se foca é entre o uso e o valor de troca de uma
mercadoria. Por que essa contradição é tão fundamental para o capitalismo, e por
que você usa a habitação para ilustrá-la?
Todas as mercadorias devem ser entendidas como tendo um valor de uso e um valor de
troca. Se eu tenho um bife, o valor de uso é que eu posso comê-lo, e o valor de troca é
o quanto eu tive que pagar por ele. Mas a habitação é muito interessante, nesse sentido,
porque, como um valor de uso, você pode entendê-la como abrigo, privacidade, um
mundo de relações afetivas com as pessoas, uma grande lista de coisas para as quais
você usa uma casa.
Mas depois há a questão de como você consegue essa casa. Antigamente, as casas
eram construídas pelas próprias pessoas, e não havia absolutamente nenhum valor de
troca. Depois, a partir do século XVIII, você tem a construção de casas especulativa – os
terraços georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente. Assim, as casas se
tornaram valores de troca para os consumidores na forma de poupança. Se eu comprar
uma casa e pagar a hipoteca sobre ela, eu posso acabar como proprietário da casa.
Então, eu tenho um bem. Por isso, eu passo a ficar muito preocupado com a natureza do
bem. Isso gera políticas interessantes – "não no meu quintal", "eu não quero que pessoas
que não se parecem comigo se mudem para o meu lado". Então, você começa a ter a
segregação nos mercados da habitação, porque as pessoas querem proteger o valor das
suas poupanças.
Assim, cerca de 30 anos atrás, as pessoas começaram a usar a habitação como uma
forma de ganho especulativo. Você podia comprar uma casa e 'virá-la' – você compra
uma casa por 200 mil livras e depois de um ano você recebe 250 mil libras por ela. Você
ganhou 50 mil libras. Então, porque não fazê-lo? O valor de troca assume o comando. E
assim você tem esse boom especulativo. No ano 2000, depois do colapso dos mercados
acionários globais, o capital excedente começou a fluir para a habitação. É um tipo
interessante de mercado. Se eu comprar uma casa, então os preços da habitação sobem,
e você diz: "Os preços da habitação estão subindo, eu deveria comprar uma casa".
E, então, aparecem outras pessoas. Você tem uma bolha imobiliária. As pessoas são
atraídas, e ela explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que não podem
mais ter o valor de uso do imóvel, porque o sistema de valor de troca o destruiu.
Isso levanta a questão: é uma boa ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é
crucial para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco? Esse não
é apenas um problema com a habitação, mas também com coisas como a educação e
a saúde. Em muitos deles, nós ativamos a dinâmica do valor de troca na teoria de que ele vai fornecer o valor de uso, mas, frequentemente, o que ele faz é estragar os valores
de uso, e as pessoas acabam não recebendo bons cuidados de saúde, educação ou
habitação. É por isso que eu acho muito importante olhar para a distinção entre o valor de
uso e o valor de troca.
Outra contradição que você descreve envolve um processo de mudança ao longo
do tempo entre as ênfases do lado da oferta sobre a produção e as ênfases do lado
da demanda sobre o consumo no capitalismo. Você pode falar sobre como isso se
manifestou no século XX e por que isso é tão importante?
Uma das grandes questões é manter uma demanda de mercado adequada para que você
possa absorver o que quer que o capital esteja produzindo. A outra é criar as condições
sob as quais o capital pode produzir de forma lucrativa. Essas condições de produção
rentável geralmente significam suprimir trabalho. Na medida em que você se envolve na
repressão salarial – pagando salários cada vez mais baixos –, a taxa de lucro sobe.
Assim, do lado da produção, você quer esmagar o trabalho o máximo que você puder.
Isso lhe dá lucros elevados. Mas então surge a pergunta: quem vai comprar o produto?
Se o trabalho for espremido, onde fica o seu mercado? Se você esmaga o trabalho
demais, você acaba em uma crise, porque não há demanda suficiente no mercado para
absorver o produto.
Foi interpretado amplamente depois de um tempo que o problema da crise da década de
1930 foi a falta de demanda. Houve, portanto, uma mudança para investimentos liderados
pelo Estado na construção de novas estradas, o WPA [a agência Works Progress
Administration de obras públicas sob o New Deal] e tudo isso. Eles disseram: "Vamos
revitalizar a economia pela demanda financiada pela dívida" e, ao fazer isso, voltaram-se
para a teoria keynesiana.
Então, você sai dos anos 1930 com uma capacidade muito forte para gerir a demanda
com muito envolvimento do Estado na economia. Como resultado disso, você tem taxas
de crescimento muito elevadas, mas as altas taxas de crescimento são acompanhadas
por um empoderamento da classe trabalhadora com salários em ascensão e sindicatos
mais fortes. Sindicatos fortes e altos salários significam que a taxa de lucro começa a cair.
O capital está em crise porque não está reprimindo o trabalho o suficiente, e por isso que
tem a virada.
Nos anos 1970, eles se voltaram para Milton Friedman e para a Escola de Chicago,
que se tornou dominante na teoria econômica, e as pessoas começaram a prestar
atenção no lado da oferta – particularmente os salários. Você tem a repressão dos
salários, que começa nos anos 1970. Ronald Reagan ataca os controladores do tráfego aéreo, Margaret Thatcher vai atrás dos mineiros, Pinochet mata as pessoas de
esquerda. Você tem um ataque contra o trabalho – o que aumenta a taxa de lucro.
Quando você chega aos anos 1980, a taxa de lucro tem um salto, porque os salários
estão sendo reprimidos, e o capital está indo bem. Mas aí vem o problema de onde você
vai vender as coisas. Nos anos 1990, isso realmente coberto pela economia da dívida.
Você começa a incentivar as pessoas a pedir muitos empréstimos – você começa a criar
uma economia do cartão de crédito e uma economia financiada em altas hipotecas na
habitação. Isso cobria o fato de que não havia demanda real lá fora.
Mas, no fim, isso explode em 2007-2008. O capital tem esta pergunta: "Você trabalha do
lado da oferta ou do lado da demanda?". A minha visão de um mundo anticapitalista é que
você deve unificar isso. Devemos voltar ao valor de uso. Que valores de uso as pessoas
precisam e como podemos organizar a produção de forma a que ela corresponda a eles?
Parece que estamos em uma crise do lado da oferta, e mesmo assim a austeridade
é uma tentativa de encontrar uma solução do lado da oferta. Como podemos
conciliar isso?
Você tem que diferenciar entre os interesses do capitalismo como um todo e o que é
especificamente de interesse da classe capitalista, ou de uma parte dela. Durante essa
crise, grosso modo, a classe capitalista se saiu muito bem. Alguns deles se queimaram,
mas, na maior parte, eles se saíram extremamente bem. De acordo com estudos recentes
de países da OCDE, a desigualdade social aumentou muito significativamente desde o
início da crise, o que significa que os benefícios da crise foram fluindo para as classes
mais altas.
Em outras palavras, eles não querem sair da crise porque estão se saindo muito bem com
isso. A população como um todo está sofrendo, o capitalismo como um todo não está
saudável, mas a classe capitalista – particularmente uma oligarquia dentro dela – tem
se saído extremamente bem. Há muitas situações em que os capitalistas individuais que
operam em seus próprios interesses de classe realmente podem fazer coisas que são
muito prejudiciais para o sistema capitalista como um todo. Eu acho que estamos nesse
tipo de situação agora.
Você já disse muitas vezes recentemente que uma das coisas que deveríamos
fazer na esquerda é envolver a nossa imaginação pós-capitalista, começando por
fazer a pergunta sobre como seria um mundo pós-capitalista. Por que isso é tão
importante? E, na sua opinião, como seria um mundo pós-capitalista?
Isso é importante porque tem sido martelado nas nossas cabeças por um considerável
período de tempo que não há alternativa. Uma das primeiras coisas que temos que fazer é pensar na alternativa a fim de avançar rumo à sua criação. A esquerda se tornou tão
cúmplice com o neoliberalismo que você realmente não pode distinguir os seus partidos
políticos dos da direita, exceto em questões nacionais ou sociais. Na economia política,
não há muita diferença.
Temos que encontrar uma economia política alternativa para a forma como o capitalismo
funciona, e existem alguns princípios. É por isso que as contradições são interessantes.
Você olha para cada um delas, como, por exemplo, a contradição entre o valor de uso
e de troca, e diz: "O mundo alternativo seria aquele em que nós definimos os valores de
uso". Então, nós nos concentramos nesses valores de uso e tentamos diminuir o papel
dos valores de troca. Ou na questão monetária – precisamos de dinheiro para circular
mercadorias, não há dúvida sobre isso. Mas o problema com o dinheiro é que ele pode
ser apropriado por pessoas privadas. Ele se torna uma forma de poder pessoal e, depois,
um desejo fetichista. As pessoas mobilizam as suas vidas ao redor da busca desse
dinheiro, mesmo quando ninguém sabe que ele existe.
Então, nós temos que mudar o sistema monetário – seja cobrando imposto de quaisquer
excedentes que as pessoas estejam começando a obter, seja chegando a um sistema
monetário que se dissolva e não possa ser armazenado, como as milhas aéreas. Mas, a
fim de fazer isso, você também tem que superar a dicotomia entre propriedade privada e
Estado e chegar a um regime de propriedade comum. E, em um certo ponto, você precisa
gerar uma renda básica para as pessoas, porque, se você tem uma forma de dinheiro
que seja antipoupança, então você precisa dar garantias às pessoas.
Você precisa dizer: "Você não precisa economizar para um dia ruim, porque você sempre
vai receber essa renda básica, não importa o quê". Você tem que dar às pessoas essa
segurança, em vez das economias privadas e pessoais. Alterando cada uma dessas
coisas contraditórias, você chega a um tipo diferente de sociedade, que é muito mais
racional do que a que temos. O que está acontecendo exatamente agora é que nós
produzimos coisas e depois tentamos persuadir os consumidores a consumir tudo o que
produzimos, independentemente se eles realmente querem ou precisam disso. Enquanto
que deveríamos descobrir quais são as vontades e os desejos básicos das pessoas e,
então, mobilizar o sistema de produção para produzir isso.
Ao eliminar a dinâmica do valor de troca, você pode reorganizar o sistema inteiro em
um caminho diferente. Podemos imaginar em que direção se moveria uma alternativa
socialista, enquanto ela irrompe a partir dessa forma dominante de acumulação de capital
que gere tudo hoje.
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