2013-07-23
A COPA DO MUNDO, A CRISE DO MODELO URBANO e a
Retomada das Cidades
"Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são
as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual,
a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital
privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos
desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo
cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e
de pior qualidade de vida". O comentário é de Paulo Roberto
Rodrigues Soares, professor do Departamento de Geografia –
UFRGS e membro do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto
Alegre em artigo publicado no sítio copa em discussão, 23-07-
2013.
Eis o artigo.
Praça Tahrir, Wall Street, Plaza Mayor, Praça Montevideo (Porto
Alegre) e depois São Paulo, Rio de Janeiro, Brasil! As
manifestações das últimas semanas nas principais cidades
brasileiras ecoam os movimentos de massa que nos últimos anos
– especialmente após a eclosão da crise financeira internacional
em 2008 – tem (re)tomado praças e ruas das principais
metrópoles mundiais em todos os continentes.
Se na escala mundial a motivação é a ausência de democracia e
a crise do sistema financeiro que afeta a “economia real”, bem
como as políticas de austeridade impostas pela Troika, no Brasil a
reivindicação inicial dos movimentos populares foi a redução (ou
eliminação) da tarifa do transporte coletivo que onera fortemente
estudantes, trabalhadores e trabalhadoras que dependem de um
serviço público desorganizado e precário. Diariamente milhões de
pessoas são aprisionados na nossa (i)mobilidade urbana que
estende a jornada de trabalho e subtrai horas de cultura,
formação, qualificação, lazer e ócio (afinal, também temos “o
direito à preguiça”).
Outras questões se agregaram aos protestos brasileiros: a
mobilização contra as isenções fiscais e os gastos públicos para a
Copa do Mundo de 2014 frente às imensas carências de serviços
de saúde, educação e segurança.
A visibilidade do país por conta da Copa das Confederações foi
aproveitada de modo inteligente e eficaz pelos movimentos de
contestação que utilizaram os momentos prévios aos jogos para
reunir milhares de pessoas com suas diferentes bandeiras. Não
abordaremos aqui os desdobramentos políticos posteriores ao
movimento de contestação nas ruas brasileiras. Nos limites deste
artigo preferimos apontar três pontos referentes ao modelo urbano
que está se implantando no país no último decênio, o qual ainda
não conseguiu conciliar (é o projeto?) crescimento econômico e
ligeira redistribuição da renda com bem-estar e qualidade de vida
nas cidades.
Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as
políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a
política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado
e a atração de megaeventos como alavanca para projetos
desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo
cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de
pior qualidade de vida. Bem ao contrário do que poderíamos
esperar de um efetivo programa de reforma social.
A crise de mobilidade é resultante da debilidade das políticas de
planejamento e investimento no transporte público e de uma
opção de crescimento econômico baseado no consumo de
massas, na construção civil e na indústria automobilística (um
quarto pilar é a exportação de commodities, que transcende os
limites deste artigo). A política de financiamento e isenção de
impostos para a aquisição de automóveis, sem os devidos
investimentos em infraestrutura urbana, levou ao
congestionamento das vias de circulação nas grandes e médias
cidades. É o problema das políticas corporativas. Incentiva-se
apenas um setor industrial visando que este seja o “motor” da
economia. As consequências são sentidas no médio prazo. Ao
primeiro sinal de fadiga do setor, a economia como um todo trava.
Vão-se os benefícios da política. Ficam os prejuízos
(congestionamentos, poluição, acidentes de trânsito).
Quanto ao transporte público novamente são propostas medidas
pouco eficazes no longo prazo. Combate-se os resultados e não a
raiz da questão. A política de desoneração para as empresas do
setor não irá solucionar os problemas. Os mesmos empresários
rentistas que lucram com a desorganização das linhas e com a
extensão urbana continuarão a gerir o sistema. É preciso
promover uma ampla discussão de uma política nacional de
mobilidade urbana, que incentive o transporte público, promova a
diversidade de modais de deslocamento nas cidades, desde os
individuais (bicicletas, por exemplo) até os mais modernos e que
exigem grandes investimentos (VLTs, trens, metrô).
Mas é preciso entender a mobilidade na sociedade
contemporânea. Nossas cidades, cujo planejamento é herdado do
período fordista, necessitam de outra compreensão de
planejamento e mobilidade. E esta deve começar por um conjunto
de perguntas: o que é a mobilidade hoje? Quem se move nas
cidades? Por que nos movemos? As desregulações do
capitalismo flexível e da “modernidade líquida” nos colocaram em
estado de constante “mobilização geral”. Hoje todos se
movimentam em diferentes horários e direções. Aliado a isso, a
produção da metrópole e da cidade pós-moderna, mais extensa,
mais fragmentada e policêntrica provocou a ruptura dos padrões
tradicionais de mobilidade. Mas continuamos presos aos velhos
paradigmas de cidade. Por isso é preciso repensar a mobilidade
em seus aspectos econômicos, sociais e culturais. As novas
tecnologias de informação devem ser utilizadas para promover o
planejamento inteligente da circulação urbana. As redes sociais
devem ser utilizadas para o planejamento e a gestão participativa
da mobilidade, o que pode ser realizado em tempo real nos
momentos de crise geral do sistema. É um caminho:
democratização e participação.
A expansão da indústria imobiliária se dá pela disponibilidade de
crédito e um amplo programa de produção habitacional (o
Programa Minha Casa Minha Vida). Entretanto, nosso programa
habitacional deixou de ser uma política de Estado para se tornar
mais uma fonte de acumulação privada. Especula-se com a terra
urbana e com o preço dos imóveis. Os projetos são aprovados a
bel prazer dos investidores, facilitados por municipalidades ávidas
por resultados de investimentos e geração de empregos. O
modelo de produto imobiliário hegemônico combina verticalização
desenfreada, condomínios fechados e grandes conjuntos
habitacionais na periferia, ressuscitando o antigo modelo de
expansão periférica dos anos 1960-1970. A densificação dos
centros e a extensão dos perímetros urbanos encarecem a
infraestrutura urbana e incidem justamente na questão da
mobilidade. Resultados: densificação nociva das áreas mais
centrais, periferias homogêneas e segregadas, cidades menos
coesas e mais fragmentadas.
Frente a todos os problemas gerados temos a Copa do Mundo
de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Com eles a utilização de
fundos públicos, seja na forma de investimentos diretos, seja nas
isenções fiscais aos grandes grupos econômicos envolvidos.
Estádios de futebol e instalações esportivas suntuosas são
construídos com diferentes formas de financiamento público.
Obras de infraestrutura urbana (re)valorizam setores das cidades
permitindo a apropriação da renda diferencial urbana pelo capital
imobiliário.
Ao mesmo tempo temos os impactos perversos da desagregação
de comunidades pelas remoções e deslocamentos (“involuntários”)
de populações dos setores urbanos valorizados pelas obras.
Estas remoções se fazem em nome do “interesse geral” da cidade
nas obras relacionadas aos megaeventos. É notório que os
governos locais estão aproveitando os megaeventos como
aceleradores de projetos de infraestrutura, bem como para
alterações e/ou afrouxamento dos marcos reguladores da
produção do espaço urbano (planos diretores, leis de
zoneamento, instrumentos urbanísticos). Acrescentem-se também
as políticas de “higienização” das cidades, de ordenamento
controlado dos espaços públicos, convertidos em espaços de
vigilância permanente e a militarização da questão urbana
empreendida pelos governos locais em associação com os
governos estaduais e federal. Tudo isto respondendo aos
“cadernos de encargos” e à “privatização do território” imposta
pelas corporações esportivas. Chamamos aqui de privatização do
território, porque as intervenções vão além das arenas esportivas
e de seus espaços públicos circundantes. Praticamente toda a
cidade está incluída na “zona de controle”.
E todo este processo se realizando com pouca ou nenhuma
transparência, com total ausência de democracia local, apesar dos
instrumentos do Estatuto da Cidade que prevêem a participação
popular e gestão democrática das cidades.
Um caso particular é o de Porto Alegre, cidade com longa e
aguerrida tradição de lutas sociais e democracia participativa. Aqui
a oposição ao “novo modelo urbano” de “cidade-empresa” vem
crescendo nos últimos anos após um período de estagnação das
mobilizações sociais. São iniciativas independentes,
fragmentadas, mas que neste momento conseguiram se conciliar
em oposição ao novo projeto de cidade que se impõe.
Movimentos pela mobilidade urbana, pela ocupação pública dos
espaços públicos, contra a sociedade controle, movimentos
ecológicos e pela qualidade de vida nos bairros, além de
movimentos populares pela moradia se (re)encontraram na Praça
Montevideo em uma nova e ampla coalizão de forças sociais. O
futuro dirá se esta nova corrente será capaz de reverter as
tendências de privatização da cidade e de submissão da gestão
urbana aos interesses de corporações e grupos privados.
Enfim, o risorgimento dos movimentos de massa no Brasil é,
sobretudo, um levante pelo “direito à cidade”. Pelo direito de
participar e decidir na elaboração, discussão e implementação das
políticas urbanas. Pelo direito a construir e viver em cidades feitas
por e para o interesse público e não pelos interesses privados.
Finalizamos com David Harvey e sua conclusão do artigo “O
direito à cidade” (2008):
“Dar um passo adiante para unificar estas lutas supõe adotar o
direito à cidade como slogan prático e ideal político, porque o
mesmo coloca a questão de quem domina a conexão necessária
entre urbanização e produção e utilização do excedente. A
democratização deste direito e a construção de um amplo
movimento social para torná-lo realidade são imprescindíveis se
os despossuídos vierem a recuperar o controle sobre a cidade que
durante tanto tempo estiveram privados e desejam instituir novos
modelos de urbanização (…) a revolução tem que ser urbana, no
mais amplo sentido do termo, ou não será”.
Veja também:
·Copa do Mundo. Para quem e para quê? - IHU On-Line -
Ano XIII 10.06.2013
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