23.09.2013
O QUE NÃO SE FALA SOBRE A SÍRIA
Adital
Aconteça o que acontecer, se inicia uma nova etapa nos EUA em que a população,
e muito em particular as classes populares, estão fartas das guerras e intervenções
do governo norte-americano para defender o que Martin Luther King chamava o "rol
imperial” da Corporate Class, que está perdendo muito rapidamente seu apoio popular.
Por Vicenç Navarro
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Para entender o que está acontecendo na Síria temos que entender o que está
acontecendo nos EUA, o que não é fácil na Espanha devido à insuficiente e/ou parcial
cobertura por parte dos meios de informação espanhóis (com algumas exceções)
da realidade daquele país. Hoje os EUA estão vivendo um momento de grandes
conflitos cuja resolução marcará o país por muitos anos. Por um lado, estamos vendo
a aplicação de algumas políticas de cortes de gasto público sem precedentes, cortes
que estão se justificando pela suposta necessidade de reduzir o que se considera
um excessivo nível de déficit público. A fim de alcançar a diminuição desse déficit,
estão cortando de uma maneira radical serviços do escassamente financiado Estado
de Bem-estar estadunidense, afetando especialmente os serviços e transferências
públicas às populações mais vulneráveis, tais como o programa Food Stamps (vale
alimentos) que os Estados provém em bases discricionais e assistenciais à população
pobre que não tem fundos para comprar alimentos e que o próprio governo federal
(seu Departamento de Agricultura) define como "food insecure”, que quer dizer, como
afirma em linguagem mais acessível o The New York Times, "pessoas que têm fome”
("On the Edge of Poverty; at the Center of a Debate” 05.09.13. p. A3), e que são 49
milhões de cidadãos e residentes estadunidenses que representam nada menos que
16,4% da população dos EUA (ver o relatório Food Insecurity Survey. Department of
Agriculture. US Federal Government. 2012).
Por outro lado, o Presidente Obama está pedindo a aprovação do Congresso dos EUA
para levar a cabo um ato de intervenção militar contra o governo da Síria, aduzindo
que dito governo cometeu um ato (a utilização de armas químicas em um conflito
armado) que deveria ser penalizado. Não sancioná-lo implicaria - segundo o Presidente
Obama - uma perda de credibilidade, não apenas dos EUA, mas da comunidade
internacional, pois tanto o governo dos EUA como a comunidade internacional
haviam se comprometido em vários tratados internacionais a não autorizar tais armas
nas frentes de batalha. Na recente reunião do G-20, o Presidente Obama afirmou
que "gasear gente inocente com armas químicas, inclusive contra crianças, é algo que
nós não fazemos e que não devemos permitir” (Financial Times, 7 de setembro de
2013, p. 4)
Que credibilidade têm os argumentos pró-bombardeio?
Tais argumentos aduzidos pela Administração Obama, entretanto, têm escassa
credibilidade. Na verdade, o governo federal dos EUA foi um dos governos que utilizou
com mais frequência armamento químico (e biológico) nas frentes de batalha. O caso
mais notório foi a utilização, por parte das Forças Armadas dos EUA no Vietnã, Laos e
Camboja, de 45 milhões de litros do Agente Laranja (uma dioxina altamente tóxica),
afetando mais de meio milhão de pessoas (matando-as ou ferindo-as e deformandoas)
entre as populações bombardeadas no Vietnã, Camboja e Laos. Ainda hoje, e como
sequela daqueles bombardeios, existe um grande número de nascimentos de crianças
com enormes deformidades entre as populações daqueles países expostas a tal arma
química, que continua no solo de mais de quatro milhões de acres desses territórios.
O governo federal dos EUA utilizou também, além de armas químicas, armas
bacteriológicas (também proibidas nos tratados internacionais) contra vários países na
América Latina (incluindo Cuba, causa da epidemia de dengue em 1981, que matou
188 pessoas, incluindo 88 crianças). E inclusive, mais recentemente, o caso mais
notório de utilização massiva de armas químicas foi o que levou a cabo o governo
iraquiano (liderado então por Saddam Hussein) contra o Irã, utilização com pleno
conhecimento e apoio do governo federal dos EUA, que apoiava ao ditador iraquiano
naquele conflito (ver Jeffrey St. Clair "Germ War: The U.S. Record”, CounterPunch.
03.09.13). E o mesmo governo federal dos EUA tem, entre seus aliados, alguns dos
maiores violadores de direitos humanos hoje no mundo, tais como a Arábia Saudita,
que tem um enorme arsenal de armas químicas que, segundo várias cadeias de
informação, foram fornecidas aos extremistas islâmicos, na oposição ao ditador
sírio (ver Eric Draitser "Debunking Obama’s Chemical Weapons Case Against the
Syrian Government” CounterPunch Sept.02, 2013), os quais possuem esse tipo de
armas como indicou também Carla del Ponte, membro da Comissão Internacional
de Investigação das Nações Unidas para investigar casos anteriores de utilização de
armas químicas na Síria, que afirmou que existiu a posse e utilização de tais armas
no passado pelos rebeldes (ver David Lindorff "While House Document Proving Syria’s
Guilt does not pass Small text” CounterPunch, Sep.3, 2013). Na verdade, ditas armas
foram utilizadas pelos dois lados do conflito na Síria.
Nem precisa dizer que a utilização de tais armas deve ser denunciada e condenada,
sem ser seletivos e discriminatórios em tal denúncia, como é o caso notório de Bernard
Henri Levi, o filósofo francês que adquiriu grande notoriedade por seu oportunismo e
seletiva denúncia da utilização dessas armas, sem nunca haver feito a denúncia de sua
utilização por parte dos estados estadunidense ou europeus, incluindo o estado francês
(tal como afirma Diana Johnstone em seu artigo "France’s Philosopher Bombardier: No
War for Bernard Henri Levi”, Counter Punch, Sept. 3. 2013).
Por que agora e não antes?
Que tem que penalizar a utilização desse armamento em qualquer parte do mundo
e por qualquer estado é um ponto sobre o qual existe bastante acordo internacional.
Mas, por que agora e não antes? E por que os EUA e não outros países? E, por
que não fazê-lo através de outros meios não militares ou inclusive, em caso de que
fossem militares por que o governo federal dos EUA e não outros? Para responder
essas perguntas, tem que entender, como disse antes, a situação dos EUA e dos
momentos históricos que este país está vivendo, o que raramente se faz nos meios de
comunicação. Vejamos os dados.
Hoje os EUA estão em um momento de profunda crise, tendo acentuado ainda mais a
deslegitimação do establishment financeiro, econômico, e político daquele país a partir
do período de imposição de medidas sumamente impopulares sem nenhum mandato
popular. A enorme influência do establishment financeiro e econômico (o que nos EUA
se chama Corporate Class) na vida política e midiática do país e o impacto sumamente
impopular das políticas públicas realizadas pelas instituições chamadas representativas
criaram um repúdio generalizado à esses establishments. Hoje, desde a Seguridade
Social (o sistema de pensões públicas) até os serviços públicos do Estado do Bem-estar
estão em perigo. Nunca antes o Estado do Bem-estar estadunidense havia estado tão
ameaçado como agora (uma situação que também ocorre na União Europeia e que
alcança dimensões extremas na Espanha). Os cortes nas áreas sociais são enormes
e, tal como indiquei anteriormente, o Congresso acaba de aprovar um corte de 40
bilhões de dólares ao programa Food Stamps, que alimenta quase uma de cada três
crianças nos EUA (20 milhões de crianças assistidas). Esses cortes vão acompanhados
de intervenções públicas que beneficiam enormemente a Corporate Class e as rendas
superiores do país, tendo alcançado níveis de desigualdade sem precedentes desde
princípios do século XX, no início da Grande Depressão. Hoje, uma pessoa do decil
superior de renda nos EUA vive quinze anos a mais que uma pessoa do decil inferior
(na Espanha são dez anos e na média da União Europeia dos Quinze são sete anos).
A Corporate Class e seu complexo militar industrial
Um eixo central da Corporate Class, que é enormemente poderoso (tal como já alertou
em seu dia o General Eisenhower, mais tarde Presidente do país), é o complexo
militar industrial. A voz mais crítica desse complexo foi Martin Luther King, que o havia
denunciado como o grande defensor da Corporate Class dos EUA e que, para realizar
sua missão, consumia enormes recursos a custa de empobrecer o escassamente
financiado estado de bem-estar do país. Consumiu 20% do orçamento federal (718
bilhões de dólares), dos quais 159 bilhões foram gastos nas guerras do Iraque e
Afeganistão (esta cifra não inclui os benefícios sociais dos veteranos das guerras e
outros serviços militares, cifra que alcança outros 127 bilhões). O governo federal
dos EUA gasta mais em suas Forças Armadas que a soma em gastos militares dos 13
países que lhe seguem depois, por nível de gasto militar. É um investimento enorme,
que se deve ao poder da indústria armamentista. Mais de 350 bilhões de dólares foram
a contratos por equipamento e manutenção de material militar consumido no Iraque e
no Afeganistão (estes dados procedem de Brad Plumer, "America’s staggering Defense
Budget in Charts”, The Washingto n Post January 7, 2013). É um gasto público enorme
que configura a economia dos EUA e grande parte de suas políticas públicas. Na
verdade (segundo os cálculos de Dean Baker e David Rosnick, do Center for Economic
and Policy Research de Washington), mais de 26% do déficit público do estado federal
se deve ao gasto nas intervenções militares do Afeganistão e Iraque, assim como o
pagamento de outras intervenções que estiveram acontecendo a uma frequência de
um conflito a cada três anos nos últimos trinta anos.
E esse grande poder deriva de sua função que é a de defender global e mundialmente
os interesses primordiais da Corporate Class daquele país. Todo esse gasto público se
realiza as custas de um enorme sacrifício do bem-estar das próprias classes populares
dos EUA (como denunciou Martin Luther King, tal como indico em meu artigo "Lo que
no se dijo sobre Martin Luther King”, Público, 3 de setembro de 2013). Não existe
plena consciência fora dos EUA de que as classes populares deste país são as primeiras
vítimas de tal "sistema imperial”, tal e como o definiu Martin Luther King. Hoje, ao
mesmo tempo em que se estão reduzindo os fundos alimentares para a população
pobre, se estão fazendo preparativos militares que custarão mais de 1 bilhão de
dólares.
A enorme crise de legitimidade do sistema político estadunidense
O enorme descrédito da Corporate Class, de suas instituições representativas (a
maioria de fundos que os políticos gastam em suas campanhas, procedem de membros
de tal classe social, situação legalizada pela Corte Suprema dos EUA), acentuado pela
grande crise atual, onde o padrão de vida das famílias estadunidenses vem diminuindo
nos últimos trinta anos (e muito marcadamente nestes anos de crises), explica a
crescente insatisfação da população com as instituições políticas. Já antes de que
aparecesse a Síria no horizonte, o Stimson Center publicou, em maio, uma pesquisa
na qual se pedia a opinião dos cidadãos sobre sua percepção e desejos sobre o gasto
militar. A grande maioria dos cidadãos queria uma redução radical do gasto militar
muito mais acentuada que qualquer proposta feita no Congresso ou pela Casa Branca.
Na verdade, já em resposta a este enfado generalizado e saturação de guerras, a
Administração Obama havia feito propostas (consideradas muito insuficientes pela
maioria da população) de baixar tal gasto, havendo-o reduzido nos últimos anos.
O bombardeio da Síria, entretanto, custará, segundo cálculos iniciais, mais de 1 bilhão
de dólares (o qual incrementou imediatamente, tal como informou o Boston Herald
de 31 Agosto 2013), o valor das ações – que estavam baixando – das empresas
produtoras de material militar tais como General Dynamics, Boeing, BAE Systems,
Raytheon e muitas outras). Enquanto isso, como indiquei no parágrafo anterior, o
próprio governo federal está cortando fundos para alimentar crianças que passam
fome.
A chamada à intervenção militar na Síria
O argumento utilizado pela Administração Obama para bombardear a Síria – a
penalização ao governo Asaad pelo emprego de armas químicas - carece, como disse
antes, de credibilidade, pois tais armas foram utilizadas anteriormente no conflito
sírio por ambas as partes, tal como documentou a Comissão de Direitos Humanos das
Nações Unidas em sua investigação da situação na Síria assim como em muitos outros
conflitos levados a cabo pelos EUA (como no Vietnã), ou por seus aliados, como Israel
em 2009, em sua repressão da população palestina de Gaza (tal como denunciou a
Anistia Internacional e afirmou Chris Hedges, chefe do escritório do Middle East do
The New York Times (ver a entrevista em meu blog www.vnavarro.org)), ou, como
afirmei anteriormente, pelos aliados dos EUA, como o então aliado Saddam Hussein
em sua luta contra o Irã em 1988. Na verdade, a história dos EUA está cheia de casos
de utilização de armas biológicas e químicas, tanto por seu governo como por seus
aliados.
Qual é, então, o motivo real para iniciar tal bombardeio da Síria? Há vários motivos,
todos eles relacionados com a situação nos EUA. A perda de legitimidade do
establishment daquele país é enorme e se encontra em uma situação muito defensiva,
encurralada. Sente que tem que fazer algo, tanto no interior como no exterior do
país. O Oriente Médio (de enorme importância estratégica para o establishment
estadunidense e europeu) está em uma situação vulcânica, na qual os EUA está
perdendo o controle. Hoje essa zona do mundo é um vulcão que está explodindo.
Para aquele establishment dos EUA e europeu, Irã é o centro do mal, que quer dizer
que pode afetar mais negativamente seus interesses. A aliança Síria-Irã, apoiada pela
Rússia, representa uma ameaça à hegemonia dos EUA naquela zona. E ultimamente
pareceria que o ditador Asaad, em sua luta contra os rebeldes, poderia prevalecer
e ganhar naquele conflito. Daí que se tente agora aproveitar o incidente das armas
químicas para atacar e debilitar tal governo. Esse é o objetivo da intervenção: tentar
recuperar a hegemonia que o governo federal dos EUA (e da Europa) está perdendo,
tanto no exterior como no interior.
E uma das primeiras mobilizações contra essa recuperação do domínio procede
precisamente das classes populares dos EUA. Para o Presidente Obama, tal decisão
de bombardear a Síria significará um enorme custo político. Como muito bem afirmou
aquele que foi Ministro de Trabalho do governo Clinton, Robert Reich (ver Robert
Reich "Obama’s Political Capital And the Slippery Stone of Syria”), tal intervenção,
que lhe cairia muito bem ao establishment estadunidense para desviar a atenção do
país ao exterior, (em um momento de grandes tensões dentro do país), lhe debilitará
enormemente, independentemente de que seja ou não aprovada pelo Congresso
dos EUA (uma instituição que só goza de 15% de apoio popular, precisamente por
perceber-se, por parte da população, estar instrumentalizada pela Corporate America).
É provável que a Câmara Baixa do Congresso (a menos afastada da população)
vote contra devido ao enorme enfado que a população tem mostrado à maioria
de congressistas em seus distritos. Tem sido precisamente as bases do Partido
Democrata (o movimento sindical, o movimento de direitos civis, o movimento
feminista e o ecológico progressista) as que vêm se opondo mais a tal bombardeio.
E hoje, a mobilização popular contra tal intervenção (que está bombardeando o
Congresso com chamadas e mensagens contra a intervenção militar) está generalizada.
Mas o establishment estadunidense está mobilizando-se através dos meios de
informação para que o Congresso autorize tal intervenção. Hoje, a população recebe
constantemente mensagens que a credibilidade do país está em jogo, indicando que
o repúdio se lerá como uma negação por parte do povo estadunidense a continuar
liderando as forças que representam a democracia e a liberdade, uma mensagem
que se repetiu continuamente para defender ditaduras e regimes feudais (e que
vão da Arábia Saudita e Qatar à Honduras e antes Haiti) que estiveram oprimindo
precisamente a liberdade e a democracia.
Aconteça o que acontecer, se inicia uma nova etapa nos EUA (inclusive em caso de que
a Câmara Baixa apoiasse a intervenção), em que a população, e muito em particular
as classes populares, estão fartas das guerras e intervenções do governo dos EUA
para defender o que Martin Luther King chamava o "rol imperial” da Corporate Class,
que está perdendo muito rapidamente seu apoio popular. E esse é o ponto chave
que marcará claramente uma mudança importante na história dos EUA (e acho que
também do mundo).
[Tradução: Liborio Júnior / Carta Maior
Fonte: Original em Coluna "Pensamiento Crítico” no jornal PÚBLICO, 10 de setembro
de 2013].
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