quarta-feira, 2 de abril de 2014

Fernando Altemeyer Junior.
Hoje é dia da triste memória do golpe militar e do principio da noite escura que durou 21 anos de tortura, mortes, corrupção, mentira e sobretudo da implantação... do regime de terror inspirado no famigerado e idolátrico regime de ideologia da Segurança Nacional. Lembrar do golpe sem ouvir as vozes dos torturados e crucificados é alienação. Lembrar do golpe sem desnudar a Lei de Segurança Nacional e o papel do general Golbery do Couto e Silva, é mais uma fuga e diversionismo. Ouvir os ditadores é sarcasmo. Ouvir os torturadores é nova vergonha nacional. Temos que ir ao ponto xis da questão. E defender os que deram a vida pela democracia, pela justiça e pela verdade. Aqui recoloco um brilhante artigo que é verdadeira aula de história para todos os que não sabem bem o que houve naquele 31 de março de 1964 e menos ainda o porque do golpe, a ação militar, o apoio da CIA e da direita e o uso que foi feito da Igreja, dos bispos e da religião. Ir aos fatos, ver as consequências e desnudar as causas, retomando o bom e velho método Ver, julgar e agir.
Prefácio à nova edição do livro DOSSIÊ DITADURA: MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS NO BRASIL (1964-1985)
Este livro conta a tragédia de centenas de pessoas, que pereceram em confronto com o regime político autoritário, instalado no Brasil após o golpe militar de março-abril de 1964.
Não se trata de figuras de ficção, sem corpo e sem alma; não estamos, aqui, diante de simples dados estatísticos. Trata-se de homens e mulheres com uma identidade própria e inconfundível, cujas vidas foram brutalmente ceifadas. Homens e mulheres que, como todos nós, tiveram infância e adolescência, riram, choraram, brincaram, amaram, sentiram ódio e indignação, pavores e alegrias. Pessoas que não voltam mais, e cujas personalidades, únicas e irreprodutíveis, vão aos poucos se apagando no coração dos parentes e amigos, antes que estes, por sua vez, desapareçam do mundo dos vivos.
Este Dossiê foi composto para preservar a sua memória. Lendo qualquer de suas páginas, temos vontade de baixar a cabeça e chorar; ou, então, de rezar e meditar sobre o mistério da Vida e da Morte.
Mas dentro de cada um de nós a consciência ética se revolta e não admite que a leitura destes resumos biográficos provoque apenas reações emocionais. Queremos compreender, temos de compreender.
Como foi possível tanta estupidez, tanta frieza na maldade? Por que razão tudo isso aconteceu entre nós durante anos, sob o olhar indiferente da maioria esmagadora da população? É decente virar as costas para essa fase ignominiosa da História brasileira, sem se importar com a identificação e a punição dos mandantes, financiadores e executantes de todos os crimes aqui descritos?
Para compreender o clima de brutalidade que se instalou no Brasil, com maior intensidade a partir de 1964, é preciso enxergar o fundo da cena política. Ele é sempre o mesmo, em todas as épocas de nossa História. Por trás do proscênio, protocolar e enganoso, divisamos a ação constante de um poder truculento, ao mesmo tempo temido e admirado pelo povo. A brutalidade dos governantes é vista como um fato inevitável e, por isso mesmo, até certo ponto normal. Mas a revolta dos governados, esta é, desde logo, estigmatizada como manifestação de alarmante desordem.
As origens desse sistema de violência oficial e da sua generalizada aceitação pela consciência popular remontam, obviamente, aos vários séculos de extermínio sistemático de indígenas e de escravização de africanos e afrodescendentes.
O apresamento de índios para servirem como mão-de-obra escrava dos colonizadores brancos, inclusive dos altos funcionários nomeados pela Coroa portuguesa, aqui estabelecidos como proprietários rurais, perdurou até a época pombalina, no final do século XVIII. No Norte do Brasil, o pretexto para tal prática era grosseiro: faziam-se entradas para resgatar índios que teriam sido mantidos como escravos, após uma guerra tribal. O falso resgate justificava, aos olhos do governo colonial e da Igreja, o estabelecimento de um novo cativeiro, doravante em proveito dos brancos. Mas quando a expedição oficial era recebida no sertão com hostilidade, não se hesitava em dizimar tribos inteiras.
Quanto à enorme população negra escravizada durante quase quatro séculos, a brutalidade permanente constituía um regime normal de vida.
As punições faziam-se à vista de todos, nos pelourinhos, geralmente pelo açoite. Era freqüente aplicar aos infelizes, até as vésperas da abolição, 200 ou 300 chibatadas, quando o Código Criminal do Império as limitava ao máximo de 50 por dia. Mas em casos de faltas consideradas graves, os patrões não hesitavam em infligir mutilações: dedos decepados, todos os dentes quebrados, seios furados. A Câmara Municipal de Mariana, em Minas Gerais, por exemplo, autorizou em provimento de 1755 que fosse seccionado um dos tendões de aquiles dos negros fugidos recapturados, de modo que eles continuassem a trabalhar, sem poderem mais se evadir.
Esse ambiente de generalizada violência acabou por entranhar-se em nossos costumes.
Numa passagem de Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre descreve a transformação do sadismo natural dos meninos e adolescentes das famílias de senhores rurais, “no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho do bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho”.
Ora, essa bestialidade dos senhores em relação aos servos, clientes e agregados acabou sendo absorvida pelas vítimas e foi regularmente transmitida às gerações seguintes. Machado de Assis ilustrou esse fato ao inventar, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o episódio do moleque Prudêncio, menino escravo
que serviu regularmente de montaria nas brincadeiras com o filho do patrão, e que, uma vez alforriado, reapareceu anos depois diante deste, vergastando seu próprio escravo numa rua do Valongo.
Especificamente no terreno da política, tem razão Gilberto Freyre, ao dizer que “no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar povo brasileiro ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático”. Não foi por outra razão que o último de nossos imperadores, em razão de sua doçura de caráter, tornou-se aos olhos do povo “Pedro banana”.
No ambiente autárquico dos grandes domínios rurais, o coronel do sertão possuía uma situação de onipotência irresponsável; mandava e desmandava arbitrariamente, não só sobre escravos e clientes, mas também sobre a própria família. Suas relações com os demais senhores rurais e com as autoridades do governo eram de potência a potência. Em todo o vasto interior do Brasil de início, e em seguida também nos centros urbanos, a legitimidade do poder do coronel provinha, não da correção de sua vida pessoal, mas da proteção que dispensava, incondicionalmente, a todos os que viviam sob suas ordens. O senhor
rural podia muito bem ser assassino ou ladrão de terras, mas, desde que amparasse os seus dependentes em caso de necessidade, era fielmente obedecido até a morte.
Tudo isso quanto à violência. Mas é preciso não esquecer outra herança maldita dos nossos tempos coloniais, ligada esta à Inquisição: a prática da delação contra os inimigos da Fé, isto é, do poder religioso estabelecido.
Durante todo o século XVIII, como salientaram os historiadores, montou-se na América portuguesa uma complexa engrenagem inquisitorial, composta de comissários e familiares, que atuavam em todo
o nosso vasto território sob a orientação de visitadores diocesanos. As acusações de heresia eram, então,
apresentadas como um dever de fé, cujo descumprimento ocasionava a excomunhão. O Manual dos Inquisidores, de Nicolau Emérico, largamente utilizado no Brasil, dispunha que “a obrigação de denunciar um herege é coisa que sempre existirá, não obstante qualquer espécie de juramento, compromisso ou promessa de guardar segredo, feita ao Acusado. Não se torna necessário usar de correção fraterna para com este, antes de o haver denunciado, a não ser em casos raros e após maduras reflexões”. E concluía o Manual: “É sempre mais seguro não o fazer”.
Será preciso dizer que os guerrilheiros do Araguaia sofreram na própria carne o efeito dessa prática antiga e bem consolidada, ao entrarem em contato com as nossas populações rurais?
Ressalte-se, porém, que a constante violência no exercício do poder, entre nós, é encoberta pela
lenda da brandura de caráter e da índole presumivelmente pacífica do nosso povo. Graças a essa explicação largamente admitida, reforçou-se na mentalidade social a visão de que a ação repressiva violenta das autoridades, sobretudo nos grandes centros urbanos, é sempre justificada como medida preventiva de um mal maior.
Na verdade, como explicaram os grandes pensadores políticos, sem uma adequada justificativa ética, capaz de suscitar a obediência voluntária na consciência dos governados, o poder oficial, ainda que revestido de todos os instrumentos de repressão violenta, tende a se enfraquecer e degenerar.
Durante milênios, a justificativa ética do poder político foi ministrada pela religião. A partir do século XIX, porém, a influência social das religiões estabelecidas declinou rapidamente. Diante disso, era mister entronizar, nesse nicho vazio do altar político, um outro ídolo. Foi a ideologia.
As correntes de esquerda e direita imediatamente escolheram o seu próprio rumo ideológico. Para a direita, a escolha recaiu na nação, na raça ou na tradição. Para a esquerda, o caminho salvador era a revolução.
Desde o final do século XVIII, com a independência dos Estados Unidos e a liquidação do Ancien Régime na França, o termo “revolução” passou a significar, no vocabulário político moderno, a renovação completa e subitânea das estruturas sociopolíticas de um país, realizada por meio da violência. Esta, como disse Karl Marx, “é a parteira de toda sociedade velha, que traz uma nova em suas entranhas” (O Capital, livro primeiro, v. II, parte sétima, cap. XXIV). Nessa visão da História, o uso da força bruta seria sempre legitimado pela justiça intrínseca dos fi ns almejados. Nem se haveria de temer, com isso, nenhuma violação dos direitos humanos, pois estes nada mais seriam do que “preconceitos burgueses”.
Pois bem, ao chegarmos à segunda metade do século XX, o conflito ideológico estendeu-se a todos os continentes, sob a forma de um confronto decisivo entre as hostes do comunismo e as do assim chamado mundo livre.
Os intelectuais orgânicos do sistema capitalista, experimentados na arte da propaganda comercial, perceberam, sem tardar, a importância da arma ideológica. O mote, por eles repetido à exaustão nos quatro cantos do mundo, passou a ser o combate de vida ou morte contra o comunismo, pois ele punha em xeque os valores morais e espirituais do Ocidente. Obtinha-se, com isso, não só o concurso ativo das organizações religiosas para essa nova cruzada ou guerra santa, como também a passividade complacente das massas miseráveis, totalmente indiferentes à defesa dos interesses materiais da classe rica.
Faltava, porém, conseguir a adesão do estamento militar, que monopolizava o uso da força armada e não tinha, a rigor, nenhuma razão particular para defender o capitalismo. O discurso utilizado para tanto foi outro: invocou-se – em estilo repassado de temor e indignação, conforme as circunstâncias – a defesa da pátria contra o inimigo externo e o traidor interno. Os grandes empresários, para os quais o capital nunca teve nacionalidade, aderiram com entusiasmo a esse discurso patriótico, e ofereceram generosa contribuição pecuniária à obra de salvação nacional.
Entre 1969 e 1979, um grupo de banqueiros e homens de negócio radicados em São Paulo, alguns deles representantes de empresas multinacionais, foram recrutados pelo então ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto, para financiar a montagem da chamada “Operação Bandeirante”, banco de ensaio dos futuros DOI-CODI (veja-se, a esse respeito, Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, p. 60 e ss.).
Na verdade, a guerra contra o perigo comunista já havia sido lançada com êxito pelo governo Getúlio Vargas, desde a rebelião militar de 1935. Ensaiaram-se, então, algumas formas de repressão brutal, depois retomadas pelos sucessivos governos militares a partir do golpe de 1964. Nas Memórias do Cárcere (terceira parte, cap. 12), Graciliano Ramos refere o modo como foi recebido, na colônia correcional, o grupo de presos de que ele fazia parte. Acordados no meio da noite com o grito de “formatura geral”, os prisioneiros ouviram atônitos, de um jovem meganha, a seguinte advertência: “Aqui não há direito. Escutem. Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo igual. Os que tem protetores ficam lá fora. Atenção! Vocês não vem corrigir-se, estão ouvindo? Não vem corrigir-se; vem morrer”.
O episódio prenunciou, de modo sinistro, o que veio a ocorrer um quarto de século depois, nas masmorras do regime autoritário instalado em abril de 1964. De todo esse drama, podemos e devemos extrair duas conclusões, uma para os mortos e outra para os vivos.
Quanto aos que se foram, importa dizer que todos eles morreram no bom combate, pois deram suas vidas pela reumanização da nossa sociedade. O seu sacrifício extremo contribuiu, decisivamente, para pôr a nu o caráter ignominioso do regime militar. Nesse sentido, não devem ser inscritos no rol dos vencidos, mas dos vencedores. Já para todos nós que sobrevivemos e, sobretudo, para os jovens de hoje, a lição a tirar do drama dos combatentes, cuja memória se procura conservar neste Dossiê, é que a atividade política representa a suprema dimensão da vida ética.
Na famosa oração fúnebre que pronunciou em homenagem aos mortos durante o primeiro ano da Guerra de Peloponeso, Péricles lembrou que os atenienses eram, naquela época, o único povo a considerar que os desinteressados da vida política não mereciam a qualificação de indivíduos bem comportados, mas de cidadãos inúteis. No presente, é preciso ir mais além. Os que viram as costas à participação na vida pública representam um perigo manifesto para a coletividade, pois é sobre essa apatia política que se fundam os regimes celerados, como esse sob o qual pereceram os homens e mulheres cuja memória é aqui homenageada.
Como palavra final, quero manifestar toda a minha admiração pelos autores deste dossiê, que acabam de prestar um relevante serviço ao Brasil à luz dos grandes valores da Verdade e da Justiça.
Fábio Konder Comparato - fevereiro de 2009.
Ver mais

Nenhum comentário:

Postar um comentário