sábado, 19 de abril de 2014

Entrevista com Eduardo Galeano

16 de abril de 2014
Galeano: “Eu não seria capaz de ler de novo ‘As Veias

Abertas…’, cairia desmaiado”

Eduardo Galeano, autor de As Veias Abertas da

América Latina, diz que não leria o livro novamente. "Seria




internado".

A reportagem é de Cynara Menezes e publicada no blog

Socialista Morena, 14-04-2014.

Em 1998, entrevistei a escritora Rachel de Queiroz (1910-

2003) e ela me confessou sentir “antipatia mortal” por O

Quinze, o clássico da literatura brasileira que publicou aos




20 anos, em 1930, e que, desde então, seria sua “obra mais

importante e mais popular” (tudo quanto é enciclopédia se

refere assim ao livro). O mesmo acontece com As Veias

Abertas da América Latina e o escritor uruguaio Eduardo

Galeano. Publicado em 1971, quando Galeano tinha 30




anos, a obra até hoje o persegue. É sempre nomeado

como “o autor de As Veias Abertas…“, o que, pelo visto, o

incomoda – mesmo porque tem mais de 30 livros além dele.

Na entrevista coletiva que deu na sexta-feira 11 em Brasília,

onde veio para ser o escritor homenageado da 2ª Bienal

do Livro e da Leitura, Galeano ouviu provavelmente a

milionésima pergunta sobre Veias Abertas. “Faz 40 anos

que você escreveu As Veias Abertas da América Latina.




Quais são as veias abertas hoje em dia?” E ele, em um

português bastante razoável:

“Seria para mim impossível responder a uma pergunta

assim, especialmente porque, depois de tantos anos, não

me sinto tão ligado a esse livro como quando o escrevi.

O tempo passou, comecei a tentar outras coisas, a me

aproximar mais à realidade humana em geral e em especial

à economia política –porque As Veias Abertas tentou ser




um livro de economia política, só que eu ainda não tinha

a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo

escrito, mas é uma etapa superada. Eu não seria capaz

de ler de novo esse livro, cairia desmaiado. Para mim essa

prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico

não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro… ‘Tem

alguma cama livre?’, perguntaria.” Risadas.

Aproveito e emendo: mas o que você achou de Chávez

dar o livro para o Obama? Obama entenderia As Veias

Abertas…? “Nem Obama nem Chávez”, responde Galeano




para gargalhada geral. “Claro, porque ele entregou a

Obama com a melhor intenção do mundo – Chávez era um

santo, cara mais bondoso que esse eu não conheci –, mas

deu de presente a Obama um livro em uma língua que ele

não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco

cruel.”

Eu nunca tinha visto o grande escritor uruguaio de perto.

É mais baixo do que imaginava, cerca de 1m70. Bastante

frágil, aparenta ter mais do que seus 73 anos. Ele mesmo

comenta que a maioria dos escritores é de esquerda e,

como tal, chegados a uma boemia e isso não faz bem à

saúde… Uma menina pergunta: “A idade não é boa para

os jogadores de futebol. E para os escritores?” Galeano




discorda. “Depende. Tem velhos muito mais jovens que

os velhos velhíssimos e tem velhos que você acha que

estão esperando a morte e surpreendentemente acabam

ganhando uma partida por 8 a zero. Não depende da

biologia nem do prognóstico dos profetas. Não depende

de ninguém. O melhor que o futebol tem como esporte –a

festa que o futebol é, a festa das pernas que jogam, a festa

dos olhos– é a capacidade de surpresa, de assombro. Na

verdade ninguém sabe o que vai acontecer. E menos ainda

os especialistas. Aqueles doutores do futebol são seres

temíveis, perigosíssimos para a sociedade e o mundo em

geral.”

Outro jornalista espeta: “Por que a esquerda não deu

certo na América Latina?” Galeano não se faz de rogado:




“Algumas vezes deu certo, algumas vezes, não. A realidade

é mutável, a realidade política e todas as outras –por

sorte. Senão seríamos estátuas, estaríamos congelados

no tempo. Não é verdade que a esquerda não deu certo.

Deu certo e muitas vezes foi demolida por ter dado certo,

por ter tido razão, porque o que a esquerda predicou, em

certo momento na América Latina, resultou ser a verdade,

então foi punida. Punida pelos golpes de Estado, ditaduras

militares, períodos prolongadíssimos de terror de Estado,

crimes horrorosos cometidos em nome da paz social,

do progresso. Da convivência democrática, imaginem!

Que democracia e que convivência são essas? Tinham

que perguntar: ‘do que está falando, senhor?’ As coisas

são muito mais complexas do que parecem. Em alguns

períodos, também, a esquerda comete erros gravíssimos

e em outros, não, faz o que deve ser feito da melhor

maneira, até além do que o próprio movimento de massas

estava esperando. A realidade sempre tem esse poder

de surpresa. Te surpreende com a resposta que dá a

perguntas nunca formuladas. E que são as mais tentadoras.

O grande estímulo para a vida está aí, na capacidade de

adivinhar possíveis perguntas não formuladas.”

Galeano está cansado, foram muitas horas de viagem para




chegar à capital federal, e quer encerrar a entrevista. Eu

protesto: “Mas e Mujica? Você não vai falar de Mujica?”




Ele não resiste e se senta de novo. “Estou meio cansado,

estou fatigado de falar de Mujica, porque todo mundo

fala dele! Até em outros planetas se fala de Mujica. Em




Marte, Júpiter… É incrível a capacidade de ressonância

que Mujica tem. E ele é muito meu amigo, já faz muitos

anos. A única coisa que posso fazer para incorporar um

grão de areia a esta praia imensa de Mujica caminhando




pelo mundo seria contar uma picola história que dá ideia da

qualidade humana do personagem.”

E começou a narrar, saborosamente, como é de seu feitio:

“Faz uns quatro anos –não tenho interesse em lembrar

direito a data– fui operado de câncer. Foi um câncer sério,

agudo. Tomei uma anestesia muito forte, dessas que

não desaparecem rápido. E estava sozinho na cama do

hospital, esperando que passasse o efeito da anestesia.

Ou seja, mais dormido do que acordado. Sem saber

muito o que acontecia, onde estava, delirando. E neste

período, estando sozinho em uma cama –sozinho, não,

acompanhado pelo câncer, mas o câncer não é um amigo

confiável. Não te recomendo. Bem, estava eu ali e volta e

meia delirava. Como sou muito futeboleiro, um religioso da

bola, tinha delírios futebolistas que me levaram aos anos de

infância, quando jogava na rua, com bolas improvisadas,

feitas com trapos velhos. E em uma dessas fugas, comecei

a bater bola. Como se fosse uma múmia egípcia que tinha

errado de domicílio, jogando futebol contra ninguém e sem

bola nenhuma, só na imaginação. Chutava a bola e ela

voltava, chutava e ela voltava. Tudo debaixo do lençol. E

nada, a bola continuava, como se estivesse morta de riso

da minha estupidez de achar que podia com ela. ‘Não,

você não pode comigo’. Numa dessas, senti um peso em

cima dos meus joelhos. Aí começo a recobrar a realidade e

vejo alguém que conheço, uma voz que reconheço, de um

amigo. E pergunto:

–O que você está fazendo aqui?

E ele:

–Isso é maneira de receber um amigo?

–Não importa, quero saber o que você faz aqui. Está doente

também?

–Que é isso, estou saudabilíssimo. O enfermo é você.

–Estou sabendo. Obrigado pela notícia, mas já estou

sabendo.

–O doente é você, está fodido, irmão. Eu vim te visitar.

Agora, não sabia que se recebia um amigo assim,

chutando-o, chutando-o e chutando-o. Não é muito

educado.

Continuamos nessa até que eu falei:

–Olhe, chega. Sua função não é estar aqui brincando

comigo. Você é o presidente da República e sua função é

governar. Mujica, você é o presidente! Vai governar este




país já! Estamos precisando de sua participação ativa,

desinteressada, importantíssima para o nosso povo. Não

perca mais tempo comigo.

–Ah, bela maneira de ser amigo, hein?

–Será bela ou será feia, mas é a única maneira para você.

Você é o presidente! Além disso, para piorar, todo mundo

gosta de você e quer que continue sendo presidente por

uns 300 anos mais. Se você não gosta, foda-se.

E aí acabou.”

Na saída, consigo falar a Eduardo Galeano do enorme




prazer que sinto em conhecê-lo pessoalmente e lhe conto

que adoro O Livro dos Abraços. Ele olha para mim e diz:




“Eu também”.

Ufa.

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