quarta-feira, 30 de abril de 2014

Sucessão separa centrais no 1.o. de Maio

Terça, 29 de abril de 2014


Sucessão separa centrais no 1º

de Maio



A aproximação da Força Sindical e de seu presidente licenciado, o deputado federal Paulo Pereira

da Silva (SDD-SP), com a candidatura presidencial do senador Aécio Neves (PSDB-MG) levou ao

isolamento da central no 1º de Maio deste ano. Com divergências sobre o formato do evento e sobre se




chamavam ou não a oposição para o ato, as outras três centrais que organizavam shows e sorteio de


carros em São Paulo junto com a Força decidiram organizar cerimônias próprias ou aderir à da CUT.

A reportagem é de Raphael Di Cunto, publicada pelo jornal Valor, 29-04-2014.




A decisão foi tomada em reunião em dezembro, quando ficaram claras as discordâncias. "Ficou uma

discussão sobre quem chamar, se abríamos espaço para a oposição, e chegamos à conclusão de que

isso iria causar animosidade, que era melhor não fazermos juntos", diz o presidente da Nova Central,


José Calixto, que vai apoiar a presidente Dilma Rousseff.

No ato da Força Sindical, Paulinho vai abrir espaço no evento, que reúne cerca de 1,5 milhão de

pessoas na capital paulista, para os principais candidatos da oposição: Aécio Neves e o ex-governador

de Pernambuco Eduardo Campos (PSB). Dilma também foi convidada, mas não deve ir - ela só




participou do ato em 2010, quando era candidata, e não vai nem à celebração da CUT.


Além do apoio de Paulinho a Aécio Neves, a candidatura de Campos também provocou cizânia nas




centrais. Em 2010, das cinco maiores centrais, quatro apoiaram a eleição de Dilma, impulsionada pelo expresidente


Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Só a União Geral dos Trabalhadores (UGT) ficou neutra, por




ter dirigentes na oposição, como PPS e PV.


Este ano, a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), que não é reconhecida pelo Ministério

do Trabalho para receber recursos do imposto sindical, vai fazer campanha pelo pernambucano. "A Dilma




não dá mais. Está destruindo a indústria, elevando a taxas de juros nas alturas", afirma o presidente da


central, Ubiraci Dantas (PPL), cujo partido também aderiu à chapa do PSB. A CGTB é outra que deixou




o ato da Força para fazer evento próprio, em Itajaí (RJ).


Eduardo Campos ainda conseguiu que a CTB, quarta maior central do país, fique neutra no primeiro




turno. "Nossa base tem uma grande maioria que apoia a Dilma [ligados ao PCdoB] e um grupo que

defende o Eduardo Campos [formado por sindicatos dirigidos pelo PSB], por isso não vamos tirar posição

agora. Mas, se for para o segundo turno, vamos chamar reunião da Executiva e definir um candidato por


maioria", diz o secretário-geral da central, Wagner Gomes (PCdoB).

Este ano, a CTB decidiu participar do 1º de Maio da CUT, central ligada ao PT que costuma comemorar

a data sozinha em São Paulo. O ato vai contar ainda com a Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB),




que é fruto de um racha na CGTB e que também não é reconhecida pelo Ministério do Trabalho como

central.


Segundo o presidente da CSB, Antônio Neto (PMDB), a decisão foi tomada porque a Força já indicou




que vai ficar contra a continuidade do atual projeto político do governo. "Nos discursos, cada central iria

apontar uma direção, indicar que caminho quer seguir. Não daria para, em um mesmo palanque, para o


mesmo público, cada central apontar para um lado", afirma. Neto vai apoiar a reeleição de Dilma, mas diz




que a central ainda não fechou questão porque há integrantes que vão ser candidatos a deputado pelo

PSB.


A CUT marcou para agosto a reunião em que vai selar o apoio à Dilma. Para o evento do 1º de Maio,

foram convidados apenas a presidente da República, o governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB),

e o prefeito da capital, Fernando Haddad (PT). "Chamamos apenas as figuras institucionais. Não vamos

dar espaço para candidatos que não defendem o processo em curso", diz o presidente da CUT-SP, Adi

dos Santos (PT).

O presidente da Força Sindical, Miguel Torres (SDD), diz, contudo, que a central não vai defender o

nome de apenas um candidato em outubro, apesar da posição de Paulinho. "Como presidente, não




vou interferir nessa questão para não gerar problemas. Além do Solidariedade, temos vice-presidentes


do PSDB, PT e outros partidos que têm candidatos próprios", diz. A decisão de fazer o 1º de Maio sem




participação das outras foi para não "misturar as coisas". "Vai ter palanque para todo lado, é um ano

complicado", afirma.


Já a UGT promove desde ontem um seminário internacional para discutir os rumos do sindicalismo




contemporâneo. "Até participamos de eventos com música e distribuição de brindes nos últimos anos,

mas do ponto de vista de reflexão política essas atividades não tem nada a acrescentar", diz o presidente


da entidade, Ricardo Patah (PSD), que vai apoiar a reeleição de Dilma mas, a exemplo de 2010, vai




deixar a central neutra na disputa.

As outras duas centrais menores, ligadas a PSOL e PSTU, vão organizar eventos em cidades em que


têm sindicatos fortes para dar destaque a seus presidenciáveis. O senador Randolfe Rodrigues (PSOLAP)

deve participar de ato da Intersindical e o sindicalista Zé Maria (PSTU) vai estar presente em evento

da Conlutas.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

A geoestratégia dos EUA empurra a Ucrânia na direção de uma guerra civil

A geoestratégia dos EUA empurra a Ucrânia na direção de uma guerra civil

Jornal Brasil de Fato

Reprodução
Os planos que a CIA desenhou, ainda em 2013, para amarrar a Ucrânia à União Europeia falharam. Agora, os EUA querem usar as forças armadas dos países membros da Otan para cercar a Rússia, como nos tempos da Guerra Fria
18/04/2014
Achille Lollo
de Roma (Itália)
Na manhã do dia 14 de abril, expirou o ultimato dado pelo presidente interino da Ucrânia, Alexander Turchinov, que anistiaria os manifestantes federalistas do Departamento Regional de Donetsk caso eles, além de entregarem suas armas, deixassem todos os prédios públicos que haviam ocupado, nomeadamente: prefeituras, casernas da polícia, escritórios do governo, representações do Ministério do Interior e dos serviços secretos.
A resposta, um uníssono “não”, foi proferido com força sobretudo em Slavyansk, que se mantém firme ao lado do comitê de luta de Carcóvia e Donetsk, os primeiros a levantar a bandeira da “República Popular”.
No dia anterior, a decisão já havia recebido o apoio das cidades de Lugansk e de Zhdanovka, onde todos os dirigentes e funcionários da prefeitura, juntamente ao pessoal dos órgãos públicos disseram que aqueles municípios integravam a “República de Donetsk”.
Assim, todos os prédios públicos ocupados passaram a ser vigiados por manifestantes armados de AK-47, que exibem em seus braços a fita laranja-negra da Ordem de São Jorge, o símbolo da vitória do exército soviético sobre os nazistas alemães e seus aliados ucranianos, mais conhecidos como os “Kapo” da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN--UPA), de Stefan Bandera.
Foi nesse clima, em que principal reivindicação é transformar o Estado centralizado em uma república federal, que, em Lugansk, os manifestantes que ocuparam o prédio das Forças de Segurança, divulgaram um manifesto político dizendo que haviam ocupado o município e os outros prédios públicos porque não aceitavam o golpe militar de Kiev. Por isso, todas suas ações são motivadas para resistir à junta de Kiev, que, entre outras coisas, entregou a segurança da Ucrânia aos herdeiros do nazismo.
De fato, a nomeação de Andrii Paroubliy (fundador do partido neonazista Svoboda) na qualidade de diretor do Conselho de Segurança Ucraniano e a entrega de inúmeros cargos de confiança nos serviços secretos aos membros do outro partido direitista (Setor de Direita), acirrou ainda mais os ânimos na Ucrânia do Leste.
É necessário lembrar que, além de ter uma forte ligação étnica e política com a Rússia e ser o coração industrial do país, nos departamentos da Ucrânia do Leste há uma massificada cultura histórica, profundamente adversa ao nazismo, já que naquelas regiões os nazistas e os colaboracionistas realizaram terríveis assassinatos em massas contra as populações de religião judaica e, sobretudo, contra os camponeses que apoiavam o exército soviético.
A principal desconfiança das populações que se levantaram no Leste do país contra o autonomeado governo interino de Kiev tem muito a ver com a desigual distribuição dos poucos recursos do Estado, a concentração dos poderes nas mãos dos homens da direita e a marginalização das cidades do Leste que não apoiaram a revolta pró-europeia da Praça Maidan.
Um sentimento que está mobilizando as populações do Leste da Ucrânia, sobretudo, após o assassinato de três manifestantes em Carcóvia, mortos a tiro pelas unidades do Exército no âmbito da “repressão aos terroristas”.
Querem sangue nas ruas
Em Kiev, há muitos integrantes do governo interino – entre eles, o ministro do Interior, Arsen Avakovviata, e o governador de Donetsk, Serghiei Taruta – que querem silenciar as manifestações nas regiões do Leste com uma violenta repressão que, em termos políticos tornaria impossível a realização da campanha eleitoral para a eleição do novo presidente em 25 de maio.
Porém, a ordem de reprimir duramente “os terroristas pró-russos”, que Avakovviata emanou em todo o país na manhã do dia 12 de abril, fez aumentar as defecções, sobretudo na polícia, tanto que o batalhão das Forças Especiais da Polícia aquartelado em Donetsk se recusou em atacar os manifestantes em Slavyansk, declarando aos jornalistas: “Nós não vamos dispersar os civis atacando-os com violência e por isso nós deixamos de obedecer a Kiev, porque não percebemos mais quem é legítimo”.
Agora, é necessário dizer que a decisão do ministro do Interior não foi extemporânea. Na prática, foi o resultado da reunião que o diretor da CIA, John Brennan realizou em Kiev no dia 12 com os responsáveis da segurança, isto é, os diretores dos serviços secretos (SBU), os comandantes da polícia e das forças especiais e, logicamente o ministro do Interior. Foi após essa reunião que o ministério anunciou a “Operação antiterrorismo em toda a Ucrânia Oriental”.
Tal medida surpreendeu o próprio presidente interino que, diante do consenso popular que os manifestantes receberam após ter ocupado a prefeitura de Donetsk e terem proclamado a República Popular, admitiu a realização de referendos locais, exigindo que os mesmos fossem realizados no mesmo dia em que os ucranianos irão às urnas para votar no seu novo presidente.
Tal posição evidencia as divisões no seio do autoproclamado governo interino e a provável ruptura de Turchinov com a candidata Yulia Tymoshenko, que nas últimas pesquisas obteve apenas 10% das intenções de voto – enquanto o megaempresário Piotr Poroshenko, já aparece com 32%, tendo recebido o apoio de Vitali Klitschko, ex-campeão dos pesos pesados de boxe e líder do partido UDAR.
Além disso, a eleição de Poroshenko oferece mais garantias às populações da Ucrânia do Leste, que em massa deverá votar em Mikhail Dobkin, ex-governador da região de Kharkiv. Portanto, se o novo presidente for Poroshenko e se ele for apresentar a reforma constitucional para transformar a Ucrânia em um estado federal é necessário que, desde já, haja um acordo prévio com o representante eleito pelas populações do Leste, Mikhail Dobkin, para evitar outra cisão territorial e assim fechar os contenciosos político e financeiro com a Rússia.
A Casa Branca não aceita tal argumento, já que a crise ucraniana é o instrumento que permite Obama tentar quebrar as relações políticas e econômicas que existem entre a maioria dos países membros da União Europeia e a Rússia.
Em segundo lugar, o recrudescimento da repressão no Leste da Ucrânia e uma eventual resposta da Rússia vai, certamente, promover o rearmamento dos países europeus membros da OTAN com meios bélicos produzidos nos EUA. Além disso, a Casa Branca quer impor seu diktat imperial contra a Rússia, porque desta forma vai poder impor condições sine qua non nas futuras negociações sobre a Síria (Genebra-3), no tratado sobre as centrais nucleares do Irã e sobre o futuro da Venezuela.
De fato, a repentina missão do diretor da CIA, John Brennan, em Kiev não tem outra explicação a não ser a criação de um cenário político complexo, cujos atos de violências podem desestimular a realização das eleições no próximo dia 25 de maio, permitindo assim a Yulia Tymoshenko reconstruir sua imagem política e recuperar os eleitores de Piotr Poroshenko.
Crise financeira
O golpe pró-europeu etiquetado “Euromaidan”, não acelerou a adesão da Ucrânia à União Europeia e tampouco encorajou os banqueiros europeus a investir naquele país. De fato, se o golpe contra o presidente eleito, Viktor Yanukóvich, abriu as portas da Ucrânia à Otan, tornando-se um importante peão da geoestratégia dos Estados Unidos, do ponto de vista econômico e financeiro, a situação piorou bastante, já que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ameaçou cortar o fornecimento de gás se a Ucrânia não normalizar, em breve, os pagamentos de sua dívida (16 bilhões de dólares).
Por outro lado, a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, revelou que o programa de ajuda financeira para a Ucrânia será implementado somente após a homologação do Conselho Diretor do FMI. Isto é, no fim d e maio, após as eleições presidenciais.
Um programa de ajuda financeira que para o povo ucraniano tem um alto custo, visto que a diretora geral do FMI se aproveitou da situação lastimável da Ucrânia para obter do presidente interino a certeza sobre a futura implementação das reformas (melhor seria dizer privatizações), que os técnicos do FMI indicarão ao novo presidente da Ucrânia. Reformas/privatizações que devem transformar a economia ucraniana em um acessório da economia de mercado europeia para logicamente ter condições de pagar cabalmente os empréstimos que serão concedidos.
Foi nesse âmbito e para evitar a bancarrota que o Comissário Europeu para o Alargamento e a Política de Vizinhança, Stefan Fule, informou que o Conselho Europeu das Relações Exteriores aprovou em regime de emergência um pacote de assistência financeira à Ucrânia no valor de 1 bilhão de euros para um empréstimo de médio prazo para cobrir as necessidades urgentes da balança de pagamento e um cash de 610 milhões de euros para pagar os empenhos caducados mais flagrantes.
Mesmo assim a situação política e econômica ucraniana mantém-se muito incerta, visto que a Casa Branca e o comando geral da Otan apostam no enfrentamento duro com a Rússia, decretando sansões econômicas contra as empresas estatais, ou com participação estatal, que vendem seus produtos nos países da União Europeia. Além de terem a pretensão de isolar a Rússia, excluindo suas delegações dos principais fóruns internacionais.
Por último, há ainda o fato de Anders Fogh Rasmussen, antes de entregar a pasta de Secretário Geral da OTAN ao norueguês Jens Stoltenberg, ter anunciado que os países membros da Aliança Atlântica deverão providenciar “um sólido rearmamento da Otan, visto que durante os últimos dez anos, no lugar de armar o bloco, na realidade, o mesmo foi desarmado”, já que a nova tarefa estratégica da Otan é “o deslocamento de fortes unidades na Polônia, na Estônia, na Letônia e na Ucrânia para evitar novas surpresas por parte da Rússia”. Ou seja, na prática, isso significa que os EUA querem usar as forças armadas dos países membros da Otan para cercar a Rússia, como nos tempos da Guerra Fria.
Nesse contexto, se as manifestações por uma nova Constituição Federal no Leste da Ucrânia forem reprimidas com violência, certamente, naquelas regiões vai prevalecer o sentimento separatista, que à diferença da Crimeia pode degenerar em uma guerra civil, onde a Rússia corre o risco de ficar amarrada. Por isso, no dia 14, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serghey Lavrov, lançou um importante sinal de alerta, ao dizer “Se houver violência por parte do exército ucraniano contra as populações da Ucrânia do Leste, o governo russo não vai mais participar em Genebra, no dia 17, da reunião ministerial, fixada para encontrar uma solução definitiva à crise ucraniana”. Uma reunião que, em teoria, deveria reunir na mesma mesa de negociações a Rússia, os Estados Unidos e a União Europeia.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália, editor do programa TV “Quadrante Informativo”.

sábado, 19 de abril de 2014

Entrevista com Eduardo Galeano

16 de abril de 2014
Galeano: “Eu não seria capaz de ler de novo ‘As Veias

Abertas…’, cairia desmaiado”

Eduardo Galeano, autor de As Veias Abertas da

América Latina, diz que não leria o livro novamente. "Seria




internado".

A reportagem é de Cynara Menezes e publicada no blog

Socialista Morena, 14-04-2014.

Em 1998, entrevistei a escritora Rachel de Queiroz (1910-

2003) e ela me confessou sentir “antipatia mortal” por O

Quinze, o clássico da literatura brasileira que publicou aos




20 anos, em 1930, e que, desde então, seria sua “obra mais

importante e mais popular” (tudo quanto é enciclopédia se

refere assim ao livro). O mesmo acontece com As Veias

Abertas da América Latina e o escritor uruguaio Eduardo

Galeano. Publicado em 1971, quando Galeano tinha 30




anos, a obra até hoje o persegue. É sempre nomeado

como “o autor de As Veias Abertas…“, o que, pelo visto, o

incomoda – mesmo porque tem mais de 30 livros além dele.

Na entrevista coletiva que deu na sexta-feira 11 em Brasília,

onde veio para ser o escritor homenageado da 2ª Bienal

do Livro e da Leitura, Galeano ouviu provavelmente a

milionésima pergunta sobre Veias Abertas. “Faz 40 anos

que você escreveu As Veias Abertas da América Latina.




Quais são as veias abertas hoje em dia?” E ele, em um

português bastante razoável:

“Seria para mim impossível responder a uma pergunta

assim, especialmente porque, depois de tantos anos, não

me sinto tão ligado a esse livro como quando o escrevi.

O tempo passou, comecei a tentar outras coisas, a me

aproximar mais à realidade humana em geral e em especial

à economia política –porque As Veias Abertas tentou ser




um livro de economia política, só que eu ainda não tinha

a formação necessária. Não estou arrependido de tê-lo

escrito, mas é uma etapa superada. Eu não seria capaz

de ler de novo esse livro, cairia desmaiado. Para mim essa

prosa de esquerda tradicional é chatíssima. O meu físico

não aguentaria. Seria internado no pronto-socorro… ‘Tem

alguma cama livre?’, perguntaria.” Risadas.

Aproveito e emendo: mas o que você achou de Chávez

dar o livro para o Obama? Obama entenderia As Veias

Abertas…? “Nem Obama nem Chávez”, responde Galeano




para gargalhada geral. “Claro, porque ele entregou a

Obama com a melhor intenção do mundo – Chávez era um

santo, cara mais bondoso que esse eu não conheci –, mas

deu de presente a Obama um livro em uma língua que ele

não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco

cruel.”

Eu nunca tinha visto o grande escritor uruguaio de perto.

É mais baixo do que imaginava, cerca de 1m70. Bastante

frágil, aparenta ter mais do que seus 73 anos. Ele mesmo

comenta que a maioria dos escritores é de esquerda e,

como tal, chegados a uma boemia e isso não faz bem à

saúde… Uma menina pergunta: “A idade não é boa para

os jogadores de futebol. E para os escritores?” Galeano




discorda. “Depende. Tem velhos muito mais jovens que

os velhos velhíssimos e tem velhos que você acha que

estão esperando a morte e surpreendentemente acabam

ganhando uma partida por 8 a zero. Não depende da

biologia nem do prognóstico dos profetas. Não depende

de ninguém. O melhor que o futebol tem como esporte –a

festa que o futebol é, a festa das pernas que jogam, a festa

dos olhos– é a capacidade de surpresa, de assombro. Na

verdade ninguém sabe o que vai acontecer. E menos ainda

os especialistas. Aqueles doutores do futebol são seres

temíveis, perigosíssimos para a sociedade e o mundo em

geral.”

Outro jornalista espeta: “Por que a esquerda não deu

certo na América Latina?” Galeano não se faz de rogado:




“Algumas vezes deu certo, algumas vezes, não. A realidade

é mutável, a realidade política e todas as outras –por

sorte. Senão seríamos estátuas, estaríamos congelados

no tempo. Não é verdade que a esquerda não deu certo.

Deu certo e muitas vezes foi demolida por ter dado certo,

por ter tido razão, porque o que a esquerda predicou, em

certo momento na América Latina, resultou ser a verdade,

então foi punida. Punida pelos golpes de Estado, ditaduras

militares, períodos prolongadíssimos de terror de Estado,

crimes horrorosos cometidos em nome da paz social,

do progresso. Da convivência democrática, imaginem!

Que democracia e que convivência são essas? Tinham

que perguntar: ‘do que está falando, senhor?’ As coisas

são muito mais complexas do que parecem. Em alguns

períodos, também, a esquerda comete erros gravíssimos

e em outros, não, faz o que deve ser feito da melhor

maneira, até além do que o próprio movimento de massas

estava esperando. A realidade sempre tem esse poder

de surpresa. Te surpreende com a resposta que dá a

perguntas nunca formuladas. E que são as mais tentadoras.

O grande estímulo para a vida está aí, na capacidade de

adivinhar possíveis perguntas não formuladas.”

Galeano está cansado, foram muitas horas de viagem para




chegar à capital federal, e quer encerrar a entrevista. Eu

protesto: “Mas e Mujica? Você não vai falar de Mujica?”




Ele não resiste e se senta de novo. “Estou meio cansado,

estou fatigado de falar de Mujica, porque todo mundo

fala dele! Até em outros planetas se fala de Mujica. Em




Marte, Júpiter… É incrível a capacidade de ressonância

que Mujica tem. E ele é muito meu amigo, já faz muitos

anos. A única coisa que posso fazer para incorporar um

grão de areia a esta praia imensa de Mujica caminhando




pelo mundo seria contar uma picola história que dá ideia da

qualidade humana do personagem.”

E começou a narrar, saborosamente, como é de seu feitio:

“Faz uns quatro anos –não tenho interesse em lembrar

direito a data– fui operado de câncer. Foi um câncer sério,

agudo. Tomei uma anestesia muito forte, dessas que

não desaparecem rápido. E estava sozinho na cama do

hospital, esperando que passasse o efeito da anestesia.

Ou seja, mais dormido do que acordado. Sem saber

muito o que acontecia, onde estava, delirando. E neste

período, estando sozinho em uma cama –sozinho, não,

acompanhado pelo câncer, mas o câncer não é um amigo

confiável. Não te recomendo. Bem, estava eu ali e volta e

meia delirava. Como sou muito futeboleiro, um religioso da

bola, tinha delírios futebolistas que me levaram aos anos de

infância, quando jogava na rua, com bolas improvisadas,

feitas com trapos velhos. E em uma dessas fugas, comecei

a bater bola. Como se fosse uma múmia egípcia que tinha

errado de domicílio, jogando futebol contra ninguém e sem

bola nenhuma, só na imaginação. Chutava a bola e ela

voltava, chutava e ela voltava. Tudo debaixo do lençol. E

nada, a bola continuava, como se estivesse morta de riso

da minha estupidez de achar que podia com ela. ‘Não,

você não pode comigo’. Numa dessas, senti um peso em

cima dos meus joelhos. Aí começo a recobrar a realidade e

vejo alguém que conheço, uma voz que reconheço, de um

amigo. E pergunto:

–O que você está fazendo aqui?

E ele:

–Isso é maneira de receber um amigo?

–Não importa, quero saber o que você faz aqui. Está doente

também?

–Que é isso, estou saudabilíssimo. O enfermo é você.

–Estou sabendo. Obrigado pela notícia, mas já estou

sabendo.

–O doente é você, está fodido, irmão. Eu vim te visitar.

Agora, não sabia que se recebia um amigo assim,

chutando-o, chutando-o e chutando-o. Não é muito

educado.

Continuamos nessa até que eu falei:

–Olhe, chega. Sua função não é estar aqui brincando

comigo. Você é o presidente da República e sua função é

governar. Mujica, você é o presidente! Vai governar este




país já! Estamos precisando de sua participação ativa,

desinteressada, importantíssima para o nosso povo. Não

perca mais tempo comigo.

–Ah, bela maneira de ser amigo, hein?

–Será bela ou será feia, mas é a única maneira para você.

Você é o presidente! Além disso, para piorar, todo mundo

gosta de você e quer que continue sendo presidente por

uns 300 anos mais. Se você não gosta, foda-se.

E aí acabou.”

Na saída, consigo falar a Eduardo Galeano do enorme




prazer que sinto em conhecê-lo pessoalmente e lhe conto

que adoro O Livro dos Abraços. Ele olha para mim e diz:




“Eu também”.

Ufa.