terça-feira, 3 de dezembro de 2013

“O CAPITAL ESTÁ INDO BEM, MAS AS PESSOAS ESTÃO INDO MAL” David Harvey

Segunda, 02 de dezembro de 2013
“O CAPITAL ESTÁ INDO BEM, MAS AS PESSOAS ESTÃO INDO MAL”



Para o geógrafo britânico David Harvey, que escreve sobre urbanização a partir do



marxismo, os problemas das cidades criam novas formas de fazer política.

Os problemas urbanos criam um espaço onde novas formas de fazer política podem

acontecer. Para o geógrafo britânico David Harvey, 78 anos, é possível constatar isso



ao olhar os protestos que ocorreram ao redor do mundo nos últimos anos. “Não vejo as

instituições políticas respondendo ativamente a este novo jeito de fazer política. Mas

também não acho que esses movimentos saibam o que fazer”, diz Harvey.

Professor da Universidade da Cidade de Nova York, Harvey falou com a reportagem de

CartaCapital, 01-12-2103, em São Paulo, antes de lançar o livro Os limites do capital



(Editora Boitempo), publicado originalmente em 1982 e agora traduzido para o português.

No livro, Harvey aborda a dinâmica da urbanização a partir de uma interpretação minuciosa

do legado do filósofo alemão Karl Marx.

Harvey é um dos principais estudiosos de Marx na atualidade. Suas aulas sobre o primeiro

volume do Capital de Marx, disponíveis na internet, foram vistas mais de um milhão de



vezes. Para o geógrafo, ao onda de neoliberalismo iniciada nos anos 1980 faz com que a

obra do alemão esteja mais atual do que nunca.

Eis a entrevista.

Na nova introdução de Os limites do capital, o senhor escreve que o livro é mais



relevante hoje do que ao ser lançado, há trinta anos. Por quê?


Porque a ascensão do neoliberalismo nos trouxe de volta ao tipo de mundo que Marx

descreveu. Marx, e seu livro Capital, consideravam um mercado funcionando perfeitamente,

como [o economista liberal] Adam Smith havia sugerido. Em 1970, nós não tínhamos



mercados que funcionassem perfeitamente. Havia muita intervenção estatal, medidas de

redistribuição de renda e um sistema forte de impostos, e a Europa tinha o estado de bemestar

social. Quando chegamos aos anos 1990, o que estava acontecendo era familiar e

tinha um paralelo com o Capital de Marx.




O interesse na obra de Marx tem crescido junto com sua relevância?


Sim. Desde 2008, todo mundo percebeu que o capitalismo não é um sistema perfeito, e

que não é a prova de crises. Marx é o principal teórico que explica como e onde a crise



irrompeu, por isso há tanto interesse nele.

O senhor se refere ao “direito à cidade” como o poder coletivo das pessoas nos

processos de urbanização, conforme definido pelo sociólogo francês Henri Lefebvre

na década de 1960. Como a ideia de direito à cidade tem sido usada hoje em dia?


Acho que o direito à cidade é um conceito genérico, e todo mundo tenta reivindica-lo.

Agentes imobiliários, financeiros e pessoas ricas têm feito isso. A questão é: quem consegue

preencher esse conceito com seu significado particular?Para o direito à cidade ser parte

de um movimento social efetivo as populações marginalizadas e oprimidas têm de tratar

desse tema como elas próprias o visualizam, para assim tomar controle do processo

de urbanização. Em muitas partes do mundo o movimento dos trabalhadores tem se

enfraquecido, e as revoltas urbanas emergiram como uma das arenas de luta anticapitalista.

As pessoas estão buscando um jeito de olhar para essas lutas, e a ideia do direito à cidade

agora é mais aceita como parte do que a esquerda deve fazer.

Os protestos no Brasil começaram com o aumento na tarifa de ônibus em São Paulo.

O senhor vê paralelo com o começo de outras revoltas ao redor do mundo?


Há um grande descontentamento pelo mundo. O capital está indo bem, mas as pessoas

estão indo mal. E essa diferença é vista de forma mais clara na qualidade da vida urbana.

As pessoas estão vendo recursos enormes gastos em obras e projetos espetaculares, mas

que não são gastos para melhorar a vida da maioria da população. Por isso, há uma raiva

dissipada que é alavancada por um motivo particular. Aqui, foi a questão das tarifas. Em

Istambul, o governo queria colocar um shopping no lugar de um parque tradicional. Nestes



e outros casos, é uma insatisfação com a qualidade de vida urbana. E a insatisfação com a

vida urbana é construída pelo capitalismo.

Os protestos de junho no Brasil foram iniciados pelo Movimento Passe Livre, um

movimento horizontal e sem líderes. Por que esse tipo de organização tem tido mais

predominância nas revoltas dentro da cidade, em vez de partidos de esquerda e

sindicatos?


Os problemas urbanos criam um espaço onde novas formas de fazer políticas podem

acontecer, como foi no caso das passagens de ônibus aqui no Brasil. Todas as

organizações que tenho visto buscando a mudança na qualidade de vida urbana não usam

as mesmas estratégias dos sindicatos e partidos políticos de esquerda, porque os problemas

de organizar uma cidade são muito diferentes dos problemas de organizar um sindicato em

uma fábrica. Então há uma forma nova de fazer política que está emergindo. E a esquerda

convencional tem quer lidar com essas novas formas.

O que faz esses grupos terem apoio do resto da população e gerarem revoltas

urbanas?


O que transforma o ativismo desses grupos em algo maior é a resposta policial, é o poder

público usando a violência para responder a manifestações legítimas. E aí, claro, as pessoas

vão às ruas contra a violência policial e movimento ganha uma nova escala. Isso aconteceu

na Turquia e no Brasil. Há ainda uma tendência de militarizar a vida urbana cotidiana. E isso

não acontece somente em manifestações, mas no dia a dia. Em Nova York, por exemplo,

a polícia pode parar qualquer negro na rua e revistá-lo. Isso cria um grande ressentimento

com as chamadas autoridades. Começam conversas sobre quem controla a cidade e porque

estão a controlando desta forma. Isso se transforma numa questão geral, que passa pela

classe média e às vezes até pessoas ricas se envolvem, porque nem eles querem viver

numa sociedade tão autoritária.

No Chile, líderes de revoltas por uma educação pública foram eleitos para o

Parlamento. Outros países não tiveram essa migração das ruas para os gabinetes.

Como você vê a relação entre esses movimentos e a política institucional?


Não vejo as instituições políticas respondendo ativamente a este novo jeito de fazer política.

Mas também não acho que esses movimentos saibam o que fazer. A resposta à eleição

de pessoas como Camila Vallejo, por parte de alguns estudantes do Chile, foi dizer que



os eleitos não seriam capazes de fazer nada no parlamento, e a mudança de verdade

teria de vir das ruas. Mas acho que sair totalmente do parlamento não seria bom. Há certo

cinismo na esquerda. Além disso, há também uma concepção ideológica de anarquistas

e autonomistas de que se candidatar a uma vaga seria uma traição do seu modo de fazer

política. Acho isso uma pena, porque nós precisamos de todas as possibilidades de ativismo

agora.

Mas, com as atuais limitações dos sistemas políticos, para que serviria a ação dentro

da institucionalidade?


Acho importante que a ação direta seja sempre acompanhada por gente próxima às

entranhas do poder estatal. Assim, por exemplo, seria possível mitigar o uso arbitrário de

força estatal contra esses movimentos. Ou, ainda mais positivamente, o estado possa

ser reorientado para tomar ações efetivas contra a acumulação de capital por meio da

urbanização.

O senhor tem falado, nos últimos anos, da necessidade de unificar a esquerda e o

ativismo descentralizado que têm surgido ao redor do mundo. O Senhor tem visto

esse movimento acontecer? Como isso poderia ser feito?


Lamento o fato de que a esquerda está ficando mais fragmentada do que unificada, porque

há problemas que necessitam de ações globais, como o aquecimento global e outras

arenas onde a política está sendo trabalhada mundialmente. Atualmente há uma grande

receptividade a novas ideias, mas nós não temos uma boa forma organizacional para formar

uma estratégia compreensiva e global. Acho que isso é algo que precisaríamos, mas como

fazemos isso? Se eu tivesse a resposta, não estaria aqui falando contigo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário