Terça, 17 de dezembro de 2013
A CHINA E A REVOLUÇÃO BLOQUEADA
"O que existe na China é um regime autoritário, baseado num intercâmbio de interesses
entre o Partido Comunista Chinês, que controla o aparato de Estado e exerce uma plena
hegemonia cultural – em termos de valores, produção científica e artística - e a ampla
maioria do povo chinês, cuja vida melhorou muito nos últimos trinta anos, após as reformas
dirigidas pelo Presidente Deng Hsiau-ping", escreve Tarso Genro, governador do Rio
Grande do Sul, em artigo publicado por Carta Maior, 15-12-2013.
O governador lembra que "em 8 de agosto de 1966 o “Pekin Informa” n.33, publicou a
seguinte nota: “A luta levada a cabo pelo proletariado contra o pensamento, a cultura, os
hábitos, os costumes antigos, transmitidos por todas as classes exploradoras durante
milênios, durará necessariamente um período extremamente longo. Assim, os grupos,
comitês e congressos da revolução cultural, não devem ser organizações temporárias, mas
organizações de massa permanentes, destinadas a atuar durante longo tempo.”
Segundo Tarso Genro, "levada a sério esta visão do PC chinês, naquela oportunidade,
poder-se-ia concluir que os velhos hábitos e costumes antigos ganharam na China de Deng
Hsiao-ping e que a contra-revolução venceu. Mas, se a contra-revolução venceu e tirou da
miséria trezentos milhões de chineses até os dias de hoje e tirará mais duzentos milhões
até o ano de 2023, não foi bom a contra-revolução ter vencido? Ou, quem sabe, não era
uma contra-revolução? Os velhos, as crianças antes famintas, os jovens antes pobres e
desempregados, as milhões de mães que não mais viram seus filhos se esvaírem na febre e
na miséria são concretos".
Eis o artigo.
Compartilho, com este artigo, uma pequena reflexão sobre a Revolução Chinesa e seu
estado atual, pois creio que ela é, ao mesmo tempo, a grande virada do século XXI e o
“canto do cisne” de uma certa visão socialista, extraída mecanicamente, tanto do marxismo
economicista, como do idealismo voluntarista, que caracteriza algumas posições da
esquerda socialista. Fica claro que estes comentários não pretendem transmitir nenhuma
lição sobre o tema, nem impugnar linhas de abordagem já definidas dentro do espectro
da esquerda sobre o assunto, mas manifestar uma opinião marginal sobre o tema para
colaborar com um debate que será, creio eu, um dos mais importantes deste século.
A grave contradição entre instaurar relações de produção socialistas sem ter conhecido a
revolução industrial, tendo que cumprir - com forças produtivas extremamente atrasadas -
agendas de desenvolvimento e promoção social, muito além das possibilidades oferecidas
pela técnica e pela ciência, pela consciência de classe e pelo contingente de trabalhadores
envolvidos nestas tarefas, é a base, na minha opinião, do drama chinês para o progresso
e, ao mesmo tempo, a demonstração da força extraordinária de um povo que se ergueu da
miséria e do atraso e está construindo um grande país.
A China será a grande potência econômica e militar do Século XXI, superando os grandes
países colonizadores e imperialistas do Ocidente industrializado, que deram as cartas ao
mundo dos pobres nos últimos duzentos anos. Rússia, Estados Unidos, Inglaterra, talvez
União Européia, estarão também no centro do tabuleiro mundial, olhando e interferindo
numa nova relação de forças para promover seus interesses.
Assim como a crise americana atual interessa ao mundo, da mesma forma que o
keinesianismo interessou a todos, para responder à crise de 29, o destino da China
interessa-nos, também, em função de duas questões adicionais: sua crise ambiental e a
originalidade do seu modelo de desenvolvimento. Eles condensam tanto os problemas
originários do desenvolvimento capitalista típico, assim como os ambientais de um
desenvolvimento socialista tradicional, ambos baseados numa exploração irracional
da naturalidade, seja para a aceleração da acumulação (privada ou estatal), seja para
concentrar lucros ou reparti-los.
Se a China vai desenvolver alguma semelhança com um socialismo tipo “soviético” -
pensado por Lenin nos anos 20 do século passado - ou vai se encaminhar para uma
espécie de “social-democracia” novo tipo, baseada na tradição milenar da centralização
imperial chinesa, ainda é cedo para dizer. O que se pode afirmar, porém, é que a
Revolução Cultural, iniciada nos anos 60, foi derrotada, e que a Revolução Nacional
Popular, vitoriosa nos anos 50, não inaugurou qualquer estrada reta em direção ao que se
pensava ser o socialismo, seja nos moldes do marxismo-leninismo tipo soviético, seja com
fundamento na dogmática da Revolução Cultural.
Se compararmos o que está acontecendo na China nos dias de hoje, com os processos
históricos mais próximos - em termos de desenvolvimento industrial e organização estatal
moderna - como a Revolução Industrial Inglesa, a colonização interna dos EEUU e a
sua modernização industrial como sucedâneo da dominação imperialista, o grande salto
industrial da União Soviética a partir dos anos 30, chegaremos à conclusão que a formação
da China atual - independentemente dos nossos juízos sobre as formas mais ou menos
humanistas como estes processos se realizaram - é o mais formidável salto que um governo
e um povo realizaram para melhorar a vida das pessoas e combater a miséria e a fome.
Como diz Edward Said, “o mundo, hoje, não existe como espetáculo sobre o qual possamos
alimentar pessimismo ou otimismo, sobre o qual nossos ‘textos’ possam ser interessantes
ou maçantes. Todas essas atitudes supõem o exercício de poder e interesses”. O otimismo
voluntarista espelhado na violência da Revolução Cultural Chinesa (a revolução como
estímulo moral para formação do homem novo desligado do passado e da tradição) e
o pessimismo - de certa forma apologético - inspirado na “teoria da dependência” (que
na política torna-se defesa do desenvolvimento subordinado aos países centrais) estão
bloqueados.
De um lado, este “bloqueio” dá-se pela impossibilidade concreta da solidariedade entre os
trabalhadores no plano internacional e, de outro, pela necessidade de que os países mais
fortes - em termos econômicos e militares - disputem a melhor possibilidade para, na relação
com países ricos em matérias primas e em terras, obter melhores condições para fortalecerse
perante os seus rivais militares e econômicos.
A impossibilidade da solidariedade “classista” nas lutas dos trabalhadores do mundo vem
de que a fragmentação no processo produtivo e a concorrência intra-classe (entre os
nacionais e imigrantes), impede programas comuns de luta contra as dominações internas
e exacerba o corporativismo economicista.
Acresça-se a isso o fato que os países que ainda se mantém com a retórica do
internacionalismo proletário veem, na verdade, uma revolução nos países mais débeis
- supostamente amigos - como uma instabilidade que pode bloquear “relações de
cooperação”.
Os grandes movimentos anti-sistema da atual década, com sentido ainda que espontaneísta
contra os poderes (sejam eles quais forem) vem dos jovens sub-empregados e
desempregados, de uma pequena-burguesia ressentida por não poder fruir de maiores
níveis de consumo, dos servidores públicos ainda com razoável nível de vida (comparados
com os mais excluídos), vem de setores libertários de certas frações de classe, sendo quase
nula a ação anti-sistema dos trabalhadores “com carteira”, ou seja, daqueles que numa
virada revolucionária tomariam conta não só da produção, mas do poder político.
Lembremos: na visão marxista e tradicional da revolução, a classe operária (ou os
“trabalhadores”) sujeitos da revolução, passariam a dominar, tanto o Estado, como a
impulsionar a dirigir a revolução na produção, para não mais trabalharem como escravos
modernos do capital. A esfinge chinesa nos indaga sobre tudo isso: de uma parte, é um
mito que os trabalhadores chineses atuais são escravos do Estado ou tenham níveis de
exploração mais duros do que a média dos países capitalistas de todo o mundo, assim
como é um mito de que a “ditadura do partido” domina a vida de um bilhão e trezentas mil
pessoas, a menos que se aceite que estas pessoas são seres inferiores alienados pela
propaganda e pela repressão.
O que existe na China é um regime autoritário, baseado num intercâmbio de interesses
entre o Partido Comunista Chinês, que controla o aparato de Estado e exerce uma plena
hegemonia cultural – em termos de valores, produção científica e artística - e a ampla
maioria do povo chinês, cuja vida melhorou muito nos últimos trinta anos, após as reformas
dirigidas pelo Presidente Deng Hsiau-ping.
A China nunca teve uma democracia em moldes ocidentais e, se é verdade que seu modelo
não cabe ser replicado a partir dos valores democráticos (ocidentais-iluministas), também
é verdade que o seu regime não se manteria sem um alto grau de consenso, inclusive
privilegiadamente em amplos setores das classes trabalhadoras. Se este regime manter-seá,
ou não, à longo prazo, dependerá dos maiores ou menores benefícios concretos que ele
vai aportar na vida milhões de chineses nas próximas décadas. Mas o que creio ser certo é
que se na China for adotado, em algum momento, um regime ocidental capitalista típico, o
país vai é aumentar a miséria, o crime, exclusão e a violência social.
Da tomada do poder em 1950, até a Revolução Cultural na década de sessenta, a China
lançou os fundamentos de uma Revolução Industrial Manufatureira com base numa
exploração intensiva do campo. A partir desta base manufatureira, que se consolidou e
ampliou com as reformas de Deng na década de 80 - superados os desatinos voluntaristas
da guarda vermelha maoista - exportando manufaturas aos bilhões e de baixo custo, a China
acumulou reservas trilionárias. Este modelo se esgotou, não só pela resistência dos países
importadores, como também pelas freqüentes violações às regras da OMC, após ter incluído
na nova sociedade de classes trezentos milhões de chineses.
Passa a China, agora, para uma nova etapa: disputar o comércio mundial com produtos
de valor agregado mais nobres, associar-se com capitais locais nos países que tenham
regimes de cooperação de Estado para Estado, expandir suas empresas estatais e privadas
para relocalizá-las em outros territórios, com muita terra, água e energia. Esta nova etapa
da nação e do Estado chinês é que pode servir de oportunidade para países como Brasil,
a Índia, a África do Sul e para os demais países que pretendam promover cooperações
interdependentes sem submissão.
Essa cooperação só poderá ser consolidada tendo como interlocutores os BRICS, geridos
por governos legítimos em Estados democráticos fortes, aparelhados para planejar e induzir
o seu desenvolvimento econômico e social, com empresas privadas e públicas de alta
qualificação tecnológica e gerencial.
A China, como qualquer mega-país, não estabelecerá relações de cooperação que não
atendam os seus interesses históricos e as necessidades sociais do seu povo ou que
prejudiquem a sua vocação hegemônica. Compete a cada país defender e preservar, sem
romantismos, “seu poder e seus interesses” – como diz Edward Said - , transformando,
pelos menos por agora, a utopia longínqua de um mundo “irmão” baseado no socialismo,
pela utopia concreta de uma soma de países interdependentes, que preservem as melhores
possibilidades para enfrentarem - através de cooperações negociadas soberanamente- a
miséria e a exclusão.
Em 8 de agosto de 1966 o “Pekin Informa” n.33, publicou a seguinte nota: “A luta levada
a cabo pelo proletariado contra o pensamento, a cultura, os hábitos, os costumes antigos,
transmitidos por todas as classes exploradoras durante milênios, durará necessariamente
um período extremamente longo. Assim, os grupos, comitês e congressos da revolução
cultural, não devem ser organizações temporárias, mas organizações de massa
permanentes, destinadas a atuar durante longo tempo.”
Levada a sério esta visão do PC chinês, naquela oportunidade, poder-se-ia concluir que os
velhos hábitos e costumes antigos ganharam na China de Deng Hsiao-ping e que a contrarevolução
venceu. Mas, se a contra-revolução venceu e tirou da miséria trezentos milhões
de chineses até os dias de hoje e tirará mais duzentos milhões até o ano de 2023, não foi
bom a contra-revolução ter vencido? Ou, quem sabe, não era uma contra-revolução? Os
velhos, as crianças antes famintas, os jovens antes pobres e desempregados, as milhões
de mães que não mais viram seus filhos se esvaírem na febre e na miséria são concretos.
Talvez uma boa resposta também venha deles. Para o futuro.
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