2014: o fim das ilusões desenvolvimentistas
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ESCRITO
POR VALÉRIA NADER E GABRIEL BRITO, DA REDAÇÃO
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SEXTA,
19 DE DEZEMBRO DE 2014
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O ano de 2014 deixa marcas indeléveis na história do Brasil. 50 anos do Golpe Militar, Copa
do Mundo e um dos processos eleitorais mais acirrados dos últimos anos.
Já quase no apagar das luzes do ano, a explosão de escândalos em uma das empresas
símbolo do país, com revelações diuturnas de uma histórica
promiscuidade público-privada.
Nosso entrevistado especial nesse final de ano é o filósofo
franco-brasileiro Michel
Löwy, que esteve no Brasil para lançar mais um livro e fez um
giro por diversas instâncias do debate político.
“Não vejo nenhuma razão para dizer que tudo vai bem. Por outro lado, temos o otimismo da vontade.
Precisamos lutar.
Antes que seja tarde. Na França, temos uma situação de crise. O governo social-liberal é um
fracasso total. Não tomou praticamente nenhuma medida de esquerda,
salvo aquela a favor do casamento
gay. E o problema é que a raiva das pessoas é capitalizada pela extrema-direita,
fascista, homofóbica, xenofóbica etc. Isso é muito preocupante. No Brasil,
existe essa postura, mas
é limitada. Aqui, nas manifestações de extrema-direita, vão 2.500
pessoas. Na França, contra o casamento gay, saíram um milhão de pessoas. Tem diferença”,
afirmou.
Com um olhar mais distanciado da rotina nacional, e a partir de visão
global do quadro das lutas políticas e sociais, o filósofo expressa
otimismo quanto ao processo brasileiro e latino-americano. Segundo ele, nosso
continente continua sendo a principal referência de reorganização da luta e do imaginário da
esquerda. “Obviamente, não há nada a esperar da socialdemocracia
europeia. O social-liberalismo latino-americano é bem mais avançado
socialmente do que o seu equivalente europeu, que é completamente alinhado
com as receitas neoliberais. Por enquanto, temos apenas duas experiências
boas na Europa (Syriza e
Podemos). Mas a extrema-direita é que está de vento em popa (...) Na
América Latina, na maior parte dos países, as comunidades indígenas são atores fundamentais
das lutas sociais, da resistência contra o neoliberalismo, da defesa do meio ambiente”.
Em sua conversa com o Correio, Lowy perpassou também por seus estudos mais recentes,
associados ao ideário marxista, e aqui não sobra espaço para ingenuidade: o filósofo é inclemente com o
capitalismo, “uma espécie de fatalidade, um destino imposto de uma maneira coercitiva sobre a
vida dos indivíduos. O que acaba desaparecendo é a liberdade. Como
dizia Weber, ‘o
capitalismo é uma escravidão sem mestre’. Porque é impessoal, os indivíduos são os escravos
do sistema. E o que temos hoje em dia é um mundo em crise. Os indivíduos são jogados
de um lado para outro pelo sistema”.
Mas assim como, para Marx, a luta de classes era a esperança de escape da “jaula de aço”
capitalista teorizada por Weber, o ecossocialismo ocupa posição de destaque nos estudos de
Lowy, como a porta de saída da opressão capitalista. Uma causa poderosa do
século 21, capaz de fagulha similar à que vimos em junho de 2013, quando o Movimento pelo
Passe Livre acendeu o pavio de manifestações históricas.
“O importante, pra nós, ecossocialistas, é fazer o trabalho de conscientizar as pessoas,
ajudando-as a entender que há
uma relação direta entre destruição da Mata Atlântica, o desmatamento da
Amazônia e a crise da água. Isso vai acontecer no Brasil, nos países
da América Latina, na Europa, no mundo inteiro. Porém, é uma corrida contra o
tempo”.
A entrevista completa com o filósofo Michel Löwy pode ser lida a
seguir.
Correio da Cidadania: Você veio ao Brasil nesse ano lançar o livro ‘A Jaula de Aço: Max Weber
e o marxismo weberiano’, o qual analisa possíveis analogias entre
Marx e Weber. O que poderia falar da temática do livro e de sua importância
para a compreensão do atual mundo em que vivemos?
Michel Löwy: O que faço no livro é uma comparação do diagnóstico que
Weber e Marx têm sobre o capitalismo, e o que eles têm em comum.
Inclusive, Weber reconhece que uma parte do que disse sobre o capitalismo já
está em Marx. E há aspectos que são específicos em Weber. Depois, trato de
dizer qual é a grande diferença entre eles, mas, num primeiro momento,
procuro comparar.
Uma coisa interessante em Weber é que ele tem uma atitude ambivalente. Ele considera o
capitalismo o sistema mais racional, mais unificado, mais moderno, muito
melhor do que os outros. Por um lado, ele quer que a Alemanha se torne uma
potência imperial industrial capitalista etc., mas, por outro lado, enquanto
homem de cultura e intelectual, desconfia do capitalismo. Ele tem uma espécie de contradição.
Que não é só dele, mas também de outros personagens dessa época.
Mas o que me
interessa, naturalmente, é a crítica. É o que procuro colocar no
livro. Em particular, me interessa a imagem e a alegoria que ele usa, de que o capitalismo funciona
como uma ‘jaula de aço’. A ideia é o capitalismo como um sistema total, que determina a vida dos
indivíduos através
de um sistema de forças impessoais que ninguém controla. Isso faz
alguns irem à falência, outros prosperarem, uns perdem o emprego, outros vão
pra miséria, perdem sua casa... É o que estamos vendo hoje, e ninguém controla.
O capitalismo é isso: uma espécie de fatalidade, um destino imposto de uma maneira coercitiva sobre a
vida dos indivíduos. O que acaba desaparecendo é a liberdade. Ele tem
uma passagem interessante, num artigo de 1906, em que diz ser “ridículo acreditar que há alguma
afinidade entre o capitalismo, por um lado, e a democracia ou a liberdade,
por outro”.
Pelo contrário, a pergunta é, se sob a dominação do capitalismo, vai sobrar alguma coisa de
democracia. Um ponto de vista curioso.
Acho interessante tal alegoria. E não é a respeito da burocracia. Porque, nos
Estados Unidos, há uma leitura de Weber segundo a qual ele fala da jaula de
aço da burocracia, coisa que realmente aparece em alguns textos seus. Mas, em
seus textos mais importantes, é do capitalismo que ele fala. Ele tem uma
outra expressão: “o
capitalismo é uma escravidão sem mestre”. Porque é impessoal, os indivíduos são
os escravos do sistema.
Portanto, é uma
crítica bastante aguda e tremendamente atual. O que temos hoje em dia
é um mundo em crise.
Os indivíduos são jogados de
um lado para outro pelo sistema, que de um dia para outro faz com que milhões
percam os seus empregos e outros milhões sejam expulsos de suas casas.
Enfim, é uma loteria que
funciona com as
regras do capital, da
acumulação de capital, da competição, da oferta e da procura. É isso, um sistema total, diz
Weber. Podemos dizer totalitário,
de certa maneira.
Acho interessante esse pensamento. É uma crítica do capitalismo que em
alguns aspectos é
próxima de Marx, mas é diferente. Marx insiste em outros temas. Penso que os
diagnósticos deles sobre o capitalismo são próximos e, se não idênticos,
compatíveis. O que é incompatível entre os dois, e consta no livro, é que o Weber era um fatalista resignado.
Nietsche dizia que o herói da época moderna é aquele que aceita o seu destino. Eis o
heroísmo moderno. E o Weber tem um pouco disso, de o capitalismo ser uma
fatalidade, no duplo sentido, de algo do qual não se pode escapar e, ao mesmo tempo, algo ruim.
Portanto, não há
escapatória da jaula de ferro. Estamos encerrados.
Para Marx, não. Marx acha que existe
um martelo, que é a luta de classe, com o qual se podem quebrar as barras da jaula de aço
capitalista. É a
revolução. É aí que eles se separam.
Correio da Cidadania: Nesse contexto, e de modo geral, o que é o marxismo hoje no
mundo e qual apropriação possível que dele podem fazer movimentos e ou
partidos que buscam um novo modelo de sociedade?
Michel Löwy: Penso que o marxismo é o instrumento e a ferramenta indispensável, não só para entender o mundo, mas
transformá-lo. Sem o marxismo, não entendemos o que está acontecendo e
tampouco temos elementos de estratégia de luta, e organização, para
transformar. Práxis e
teoria, as duas coisas, estão ligadas ao marxismo. Ao mesmo tempo, o
marxismo não pode ser a
repetição simples
daquilo que disse Marx ou Lênin ou Trotsky ou Rosa Luxemburgo... Enfim, isso
tudo é fundamental, essencial, mas não suficiente, porque o mundo se
transformou. Problemas novos apareceram.
Aqui na América
Latina, por exemplo, na maior parte dos países, as comunidades
indígenas são atores
fundamentais das lutas sociais, da resistência contra o
neoliberalismo, da defesa do meio ambiente. Isso não está previsto em nenhum
dos clássicos do marxismo. Na época, eles pensavam nos operários... Mas índios como atores de uma
luta revolucionária não está previsto. Teologia da libertação também não está prevista.
Assim, o marxismo
precisa se desenvolver e estar disposto a aprender com os movimentos sociais, com as lutas e
fenômenos novos. Pra mim, a novidade ruim, mas importante, e que o marxismo precisa integrar, é a
questão ambiental. Porque o capitalismo está levando a humanidade não para o brejo, pois seria
simpático, mas para um abismo. Um abismo que se chama aquecimento global, mudança
climática, com consequências inimagináveis, sem precedentes nos últimos
milhões de anos. Isso resulta, inevitavelmente, da lógica do capitalismo de
expansão ilimitada, produtivismo, consumismo e, portanto, destruição e
desequilíbrio ecológico.
Portanto, eu acho que o
marxismo do século 21 tem de ser um marxismo ecológico.
Correio da Cidadania: Aqui entram seus estudos sobre ecossocialismo.
Michel Löwy: Sim. Mas partindo do marxismo. Partindo da crítica da economia política,
do projeto socialista.
Tudo isso é fundamental. Mas tem que ser radicalizado, aprofundado e enriquecido com questões novas, em
particular, a questão ambiental.
Correio da Cidadania: Antes de aprofundar um pouco essas novas ideias,
vemos que seu livro também trabalha com a noção de que o capitalismo teria
conseguido, mais do que em qualquer época, introjetar a ideia de aceitação de
um destino inexorável às pessoas, como também sugere a citação de Nietsche.
Isso porque as próprias relações humanas e sociais seriam menos autênticas,
mais automatizadas. É
possível concluir que hoje em dia está ainda mais difícil dialogar e
mobilizar pessoas, especialmente a partir de vieses marxistas?
Michel Löwy: Eu não diria isso. Cada época tem suas formas de luta, conscientização, resistência
cultural e política. As de hoje não são as mesmas do começo do século.
Mas eu não diria que no
mundo de hoje tudo é conformismo e aceitação. Eles existem em grande
escala, evidentemente, mas existe
também a resistência. As resistências estão presentes em formas
diversas.
Eu mencionei as lutas
indígenas, mas não é só. Acho que a América Latina é um bom exemplo do
tipo de resistência que está se desenvolvendo. Temos assistido nos últimos
anos a uma quantidade
extraordinária de lutas, de semi-insurreições na Bolívia, Argentina,
Venezuela etc., de mudanças de
governo. A esquerda chegou ao governo na maioria dos países da América
Latina, esquerdas de
diversos tipos, umas mais diluídas, outras mais consistentes.
Enfim, há uma vontade
de mudança. E
quando menos se espera, estoura uma contestação que pode ser confusa, mas tem
elementos radicais, como aconteceu em junho do ano passado, quando o
Movimento Passe Livre (MPL) dava o tom dos acontecimentos. Eu não sou
nem otimista, nem pessimista. Creio que devemos seguir como o Gramsci dizia, ou seja, “pessimismo da razão e otimismo da
vontade”. Fazer a análise de que a situação é grave, de que o poder do
capitalismo é enorme, dos perigos e catástrofes que estão se aproximando
rapidamente e também são dramáticos.
Não há nada, nenhuma razão,
pra dizer que tudo vai bem. Por
outro lado, temos o otimismo da vontade. Precisamos lutar. Existe uma possibilidade de
luta. Existem movimentos de luta, existem algumas vitórias da esquerda.
Portanto, temos de
participar dessa tentativa de resistir. Antes que seja tarde demais.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, o que é, pra você, a esquerda hoje, no Brasil e na
América Latina?
Michel Löwy: Esquerda, em princípio, são partidos e movimentos que se identificam com os
interesses das classes subalternas. É o sentido geral. Mas essa esquerda é um leque muito
vasto aqui na América Latina, que vai da centro-esquerda – que também
pode ser designada como social-liberalismo – até uma esquerda mais radical,
anti-neoliberal, anti-oligárquica, anti-imperialista.
Por exemplo, peguemos o caso dos governos de esquerda. Eu acho que a vitória de tais governos foi
um avanço, mas muito desigual. Em vários países, como Brasil, Chile,
Uruguai, Paraguai (que não durou muito), tivemos experiências de tipo social-liberal. O que é o social-liberalismo?
É um governo de esquerda
com compromisso de centro-esquerda, que aceita o quadro do capitalismo neoliberal, mas procura
introduzir algumas medidas sociais.
O espírito do social-liberalismo – e acho que os governos do PT no Brasil
o representam muito bem – é o seguinte: “vamos fazer tudo o que pudermos
pelos pobres com a
condição de não mexer nos privilégios dos ricos”. E a fórmula matemática do
social-liberalismo é, por exemplo, o orçamento da agricultura no Brasil: 90%
para o agronegócio e 10% para a agricultura familiar. Claro, esses 10%
fazem uma diferença. É uma ajuda importante, mas há uma desproporção enorme.
Essa é a fórmula do social-liberalismo, com variantes. O Uruguai tem o Mujica,
um cara simpático. Cada país tem uma forma diferente, mas o funcionamento
fundamental é esse. Depois, temos os outros modelos, chamados bolivarianos. Venezuela,
Bolívia e Equador tentaram romper com o neoliberalismo. Houve
enfrentamento duro com a oligarquia, que tentou armar golpe militar, mas não conseguiu, nos três
países. E houve enfrentamento
com o imperialismo norte-americano.
Configura-se nesses países, portanto, outro tipo de política. Houve mobilização social, medidas
relativamente avançadas etc. Mas nada rompeu com o capitalismo. Não dá pra falar em socialismo. Mas pelo menos
tais governos colocam como horizonte histórico de sua atividade o socialismo do século 21. É
importante. Mesmo que esteja muito longe, o fato de se ter tal objetivo é um fato político importante na
formação dos militantes, na maneira de orientar sua estratégia.
No Brasil e nos outros países, isso não está colocado, de jeito nenhum. Os
governos do Lula e da Dilma jamais disseram que vivemos uma etapa em direção
ao socialismo. Isso eles diziam nos anos 90. Desde 2002, o assunto saiu da pauta. O mesmo
critério vale para os partidos, os movimentos, os sindicatos... Existe toda
uma diversidade.
Esse é o panorama da esquerda que enxergo nessa parte do mundo.
Correio da Cidadania: Pensando agora no Brasil, como você, que fica
muito tempo fora do país, o enxerga? E como viu a vitória de Dilma neste
pleito, com a margem de votos mais estreita dos últimos tempos, e o que espera desse quarto
mandato petista no Planalto, ao olhar para a nova configuração do Congresso e para a atual
conjuntura econômica nacional e internacional?
Michel Löwy: Eu não escondo as minhas opiniões. No
primeiro turno, apoiei a campanha da Luciana Genro, penso que ela fez uma ótima
campanha e teve um resultado importante. Apoiei-a também por achar que a Dilma não iria promover as
mudanças necessárias no Brasil.
No segundo turno, resolvi apoiar a Dilma, criticamente. Porque achava que a Dilma tinha
feito demasiadas
concessões ao capital, aos bancos e ao agronegócio, mas o Aécio não ia fazer concessões, porque ele
é representante direto
do capital, dos bancos e do agronegócio. É diferente.
Mas não tenho grandes expectativas. Eu me lembro que, antes das
eleições, discuti com amigos próximos do PT que diziam: “você vai ver, a
Dilma fez uma campanha de esquerda, ela vai ter que tomar medidas radicais”.
Eu não acredito. E as
primeiras medidas do governo pós-eleições provam essa descrença: são
dirigidas ao mercado, especialmente ao mercado financeiro. Ficou muito claro.
Houve, ao mesmo tempo, uma ofensiva conservadora da direita tradicional, bastante
radicalizada, em torno do Aécio, e uma extrema-direita de corte fascista, ou
fascistizante, que se manifestou no novo Congresso eleito, com figuras como Jair Bolsonaro e outros
partidários da ditadura militar. Bastante preocupante. Além de outras
figurinhas que foram eleitas, gerando um deslocamento brasileiro.
Ainda assim, eu insisto que, no Brasil, e na América Latina em geral, o panorama é bem
mais alentador do que na Europa.
Na França, temos uma situação de crise. O governo social-liberal é um
fracasso total. Não tomou praticamente nenhuma medida de esquerda, salvo
aquela a favor do casamento gay. E o problema é que a raiva das pessoas é
capitalizada pela extrema-direita, fascista, homofóbica, xenofóbica etc. Isso
é muito preocupante. No Brasil, existe essa postura, mas é limitado. Aqui, nas manifestações de
extrema-direita, vão 2.500 pessoas na Avenida Paulista. Na França, contra o
casamento gay, saíram um milhão de pessoas. Tem diferença.
Correio da Cidadania: Dentro de tal contexto, o que é a esquerda na Europa hoje?
Partidos como o Podemos espanhol e o Syriza na Grécia podem ser tidos como
tais?
Michel Löwy: Obviamente, não há nada a esperar da
socialdemocracia europeia. O social-liberalismo latino-americano é bem mais
avançado socialmente do que o seu equivalente europeu, que é completamente alinhado com as
receitas neoliberais. Vemos na França: a única coisa que se sabe fazer
é desviar dinheiro dos
impostos, fazer com que os ricos paguem menos impostos e o povo pague a conta. Toda a política funciona
em torno disso, de modo que desse mato não sai mais cachorro.
O que existe, então, é a esquerda radical, anti-neoliberal, que na maioria dos países
da Europa tem dificuldade de se posicionar como alternativa e capitalizar o
descontentamento. A
extrema-direita está com um grande avanço na maior parte dos países da Europa.
Uma das exceções
mais interessantes é a Grécia,
onde a extrema-direita é forte, mas não passa de 10%, e a esquerda radical,
organizada na coalizão do Syriza,
anda por volta de 30%. É uma esperança.
Não sou muito otimista a médio prazo, porque, mesmo que o Syriza ganhe
as eleições, dificilmente terá a maioria no parlamento da Grécia. Porque
precisaria de aliados e não tem. O Partido Comunista na Grécia, infelizmente,
é ultra-stalinista, ultra -sectário, pensa que o Syriza é o inimigo
principal. Já vimos uma cisão de direita no Syriza, chamada Esquerda
Democrática, que vem do Partido Social Democrático. Mas está muito
enfraquecida, pelo jeito nem vai entrar no congresso. Enfim, o Syriza não tem
aliados e não sei como poderá ter a maioria no parlamento. Vai ser complicado.
E tem essa novidade espetacular que é o Podemos, muito interessante, a expressão
política do movimento dos Indignados, que não encontrava o canal político
para se exprimir porque a esquerda tradicional, a Esquerda Unida, o Partido
Comunista Espanhol, não se deram conta da importância desse movimento,
ficaram de fora. E eles conseguiram criar o Podemos, que tem uma ascensão
espetacular. Tem seus problemas, mas é um fenômeno bem promissor.
Correio da Cidadania: Seria o Podemos uma promessa de casamento,
pontes, entre esses grandes movimentos, como Occupy, Indignados, e aquilo que
se chama de esquerda na Europa?
Michel Löwy: Não sei se dá pra dizer que isso vai se
generalizar. Por enquanto, temos essas duas experiências, que são muito boas.
O Syriza é uma coalizão mais tradicional de forças de esquerda, de matriz
comunista, no sentido amplo. O Podemos já é outra coisa. É um “objeto político não identificado”. É anti-neoliberal, crítico, mas é difícil
dizer. Possui correntes
de esquerda, organizadas, mas o Podemos, enquanto tal, não tem uma identidade
política muito definida. De toda forma, é contestador do sistema, das políticas de governo.
Isso é fundamental.
No entanto, não sei se algo do gênero vai acontecer em outros países
da Europa. Na Itália,
quem capitalizou o descontentamento foi o Beppe Grillo, humorista que é uma espécie de
Tiririca italiano, com um movimento confuso, às vezes você pensa que é de
direita, às vezes você pensa que é de esquerda. É difícil classificar. A
esquerda propriamente ficou completamente marginalizada. Na França, também
como já disse, o panorama não é positivo para a esquerda...
O cenário modifica muito de país para país.
Não sei o que vai acontecer. Por enquanto, a extrema-direita é que vai de vento em
popa.
Correio da Cidadania: Você diria, portanto, que a Europa tem
apresentado um dos piores cenários globais das lutas sociais e sua
possibilidade de inserção popular, ainda que vejamos alguns impulsos aqui e
acolá?
Michel Löwy: Sem dúvida. Pelo menos existem lutas em
dois países, onde há um clima comparável ao da América Latina. Hoje em dia, os europeus olham
muito para a América Latina. Mesmo a França olha muito para a América
Latina, procurando se inspirar. A América Latina está bem mais avançada.
Correio da Cidadania: No Brasil, como imagina que ficarão as pautas associadas aos
movimentos populares e progressistas nesse próximo período?
Michel Löwy: Os movimentos sociais no Brasil não são homogêneos. Alguns
estão muito atrelados ao
PT e, portanto, ao governo. É o caso da CUT. Ela não mobiliza uma luta que enfrente o
governo. De tempos em tempos, mobiliza-se para causas democráticas, como
reforma política, aumento do salário mínimo... Enfim, a CUT pode ser parceira
só de algumas mobilizações.
O MST é muito mais autônomo. Embora também tenha vínculos com o PT e
dependa em parte do governo e seu subsídio, tem mais autonomia, é mais
propositivo, mais
crítico. As grandes mobilizações anteriores a 2013, geralmente, eram
puxadas pelo MST. Há também movimentos mais antigos, que continuam existindo
nas comunidades de base,
e todas as pastorais da
igreja, pastoral
da terra, pastoral
da juventude etc. Há todo um setor importante da igreja que funciona
como movimento social.
Além dos movimentos de
professores, estudantes, advogados...
E há outros movimentos
de “tipo novo” surgindo, muito mais autônomos em relação ao PT, com
uma dinâmica libertária.
O MPL é um movimento muito interessante, pequeno, mas com impacto social
grande. Eles conseguiram simplesmente por fogo no estopim de junho de 2013.
Foram eles que fizeram isso. Com a grande inteligência de associar uma reivindicação ao mesmo tempo
utópica e realista: a tarifa zero. Que seria factível, se houvesse um governo com um
pouco de coragem. Não precisa de revolução para termos tarifa zero. Mas ela
implica comprar uma
briga com a máfia do transporte, entre outras iniciativas que nenhum
governo ou prefeitura ousam levar adiante.
A tarifa zero é, portanto,
uma proposta popular, importante, factível, e o MPL foi
quem a apresentou. Além disso, é uma proposta ao mesmo tempo social e ecológica. Porque, se
existe o passe livre, a circulação de automóvel diminui, e a emissão de gases
diminui automaticamente.
Eles tiveram essa reivindicação utópica, é claro, junto com uma
reivindicação imediata, concreta. Essa foi a inteligência deles. Juntar os
dois elementos foi formidável. Realmente é um movimento exemplar. Quando
voltei à Europa, no ano passado, tentei convencer os meus amigos da esquerda europeia a se inspirarem no
MPL (risos).
Correio da Cidadania: É difícil prognosticar, mas você acredita que se desenha
um tempo propício para novas rebeliões populares, no Brasil e no mundo, a
exemplo das que vimos mais recentemente?
Michel Löwy: Os sociólogos e os historiadores já têm
muita dificuldade para entender o passado. O presente ainda mais. Assim,
prever o futuro... O bom
do futuro é justamente que as coisas são inesperadas. Todas as grandes revoluções
são inesperadas. A
revolução russa, ninguém esperava. E a cubana, menos ainda. Felizmente, os acontecimentos, as
explosões, as revoltas, as revoluções sempre ocorrem onde não se espera, no
momento que menos se espera e da forma que menos se espera. Essa que é
a beleza. Se tudo fosse já previsto, o mundo seria muito chato.
Correio da Cidadania: Você destacou que o MPL teve a lucidez que
acendeu o pavio das lutas sociais a partir de causas muito presentes e
pertinentes da nossa vida cotidiana. É possível vislumbrar que as bandeiras ambientais, especificamente do
chamado ecossocialismo, possam causar impacto semelhante?
Michel Löwy: Penso que a causa ambiental é altamente explosiva. Na
medida em que se entendem as suas proporções, a relação com o funcionamento
do sistema capitalista e a total
incapacidade de governos burgueses, de várias cores, em tomar qualquer medida,
há que se chegar a uma consciência
anticapitalista.
É a nossa aposta. Mas temos
de partir de lutas concretas, dos “vinte centavos”. Das lutas indígenas contra
uma multinacional de petróleo, daquelas moças que arrancaram os plantios transgênicos...
Por exemplo, agora, tem
a questão da água, fundamental. Essa crise da água possui uma relação direta, todo
cientista está dizendo, com o desmatamento da Amazônia. Só que os
políticos e a mídia preferem não falar, porque se coloca um problema e tanto. Eles falam
que vão abrir uma represa aqui, desviar o rio por lá e tal. Tapar o buraco. Mas não sabemos de onde vem o buraco.
O importante pra nós, ecossocialistas, é fazer o trabalho de conscientizar as pessoas,
ajudando-as a entender que há
uma relação direta entre destruição da Mata Atlântica, o desmatamento da
Amazônia e a crise da água. E vai se agravar: se deixarmos a situação prosseguir como está, veremos a desertificação.
Vamos pouco a pouco perdendo
as fontes de água potável. Isso vai acontecer no Brasil, nos países da
América Latina, na Europa, no mundo inteiro.
Porém, é uma corrida contra o tempo. Será que vamos conseguir mobilizar as pessoas para
enfrentarem o sistema antes que o processo se torne irreversível? Não sei.
Simplesmente temos que agir com o otimismo da vontade.
Correio da Cidadania: Quanto a um outro de seus livros, ‘O capitalismo como religião’,
gostaria de fazer algum comentário?
Michel Löwy: Na realidade, trata-se de uma reedição,
mais ampliada, com novos ensaios, novos documentos. Não é uma tentativa de
formular um sistema doutrinário fechado, mas ensaios sobre alguns aspectos do
ecossocialismo, tentando explicar o que é, por que o ecossocialismo procura
se articular ao marxismo, à crítica marxista e à economia política, de modo a
fazer a crítica ecológica do desastre ambiental, do produtivismo. Trata-se de
juntar as duas coisas e, em particular, contar a história de como foi se desenvolvendo a ideia
ecossocialista, como foi se organizando. Hoje em dia, ela tem uma
certa difusão na Europa e na América Latina. É algo novo.
No Brasil, concretamente, o ecossocialismo tem um grande precursor,
que é o Chico Mendes, um
ecossocialista e ecologista que juntava os dois contextos de maneira
muito radical, muito consequente. É uma belíssima figura que pode nos
inspirar para as lutas aqui no Brasil.
O ecossocialismo é uma proposta positiva, que implica em uma crítica das formas
produtivistas. É uma proposta do século 21, que visa superar tanto o
socialismo do século 20 como a socialdemocracia, o stalinismo, além de também
trazer uma crítica à ecologia defendida pelo Partido Verde, por partidos
sociais-liberais, enfim, aquela ecologia adaptável ao mercado.
É uma proposta radical, que propõe, no fundo, uma mudança de paradigma
da civilização bastante ampla, profunda e radical. Mudar as relações de produção, os sistemas de
transporte. O que estamos questionando são os padrões e
paradigmas da civilização capitalista, industrial, ocidental.
Eu sempre cito uma frase do Walter Benjamin, um dos meus pensadores
favoritos: “o que é a revolução? Marx dizia que as revoluções são as
locomotivas da história, mas talvez seja um pouco diferente. Talvez as revoluções sejam a
humanidade puxando os freios de urgência para parar o trem”.
Eu penso exatamente assim. Nós estamos todos num trem suicida, o trem da
civilização capitalista, que está caminhado com rapidez crescente para o
abismo, no caso, da catástrofe ecológica e da mudança climática. Portanto, a revolução é parar esse trem
antes que seja tarde demais.
Correio da Cidadania: Finalmente, como entra a teologia da libertação, outro foco de
seus estudos, em tudo o que foi discutido aqui? E o que pensa do papa Francisco?
Michel Löwy: Eu vou voltar um instante ao meu
livro, A Jaula de Aço, que tem um capítulo chamado “A ética católica e o espírito
do capitalismo”. Nele, procuro mostrar que Weber nunca escreveu um
livro sobre o catolicismo, nem mesmo um artigo, mas ele tem algumas
indicações pra explicar por que a ética católica não se dá bem com o capitalismo. Ele diz que
a ética católica não consegue se entrosar, e resiste, ao caráter impessoal do
capitalismo. Sempre aparece, volta e meia, uma atitude de hostilidade ou de antipatia da ética católica
para com o capitalismo. É claro que tal hostilidade, durante muito tempo, veio pela direita.
A história da América Latina, nos últimos 40, 50 anos, tem muito a ver
com a chamada teologia
da libertação, que, a meu ver, é cristianismo da libertação. Tivemos a
revolução sandinista,
o movimento
operário-camponês brasileiro, o levante de Chiapas, todos com elementos muito fortes
desse cristianismo da libertação. E apareceram figuras impressionantes,
bispos como Oscar
Romero, Samuel Ruiz, também leigos, como o Plinio Arruda Sampaio, socialista
cristão e figura extraordinária.
A teologia da libertação é, assim, uma dimensão fundamental da
história das lutas e revoluções contemporâneas. Claro que, nos últimos 20 anos, houve uma
dura campanha do Vaticano pra marginalizar e desmantelar tal movimento.
O que foi obra de João
Paulo II e Bento XVI. Não conseguiram fazê-la ruir inteiramente, mas reduziram seu espaço.
Quando o
Francisco foi eleito, não esperava grande coisa. Considerando seu
passado na Argentina, não tinha muita expectativa. Mas me enganei. Ele
surpreendeu com uma série de iniciativas corajosas. Dentre outras, ele escreveu um texto muito
crítico do capitalismo e convidou Gustavo Gutierrez, além de movimentos sociais, para irem
ao Vaticano. Se puder continuar por mais anos, e não morrer
misteriosamente, como João Paulo I, vai criar uma conjuntura nova, mais favorável ao
cristianismo da libertação.
Obviamente, há
uma resistência muito grande no Vaticano, de setores conservadores,
que tentam barrar suas propostas. Como me narrou um amigo, a Opus Dei tem uma
oração muito simbólica: “pai
nosso que estais no céu, ilumine-o. Ou elimine-o”.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da
Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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ÚLTIMA
ATUALIZAÇÃO EM SEXTA, 19 DE DEZEMBRO DE 2014
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A publicação deste texto é livre, desde que citada
a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania
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