As crises da vida e a auto
realização
31/07/2015
BOFF
Quase só se fala de crise e crise
das crises, aquela da Terra e da vida, ameaçadas de desaparecer como acenou o
Papa Francisco em sua encíclica sobre “o cuidado da Casa Comum”. Mas tudo o que vive é marcado por
crises: crise do
nascimento, da juventude, da escolha do parceiro ou parceira para a vida, crise
da escolha da profissão, crise do “demônio do meio-dia”, como a chamava Freud
que é a crise dos quarenta anos quando nos apercebemos que já estamos chegando
ao topo da montanha e começa a sua descida. Por fim, a grande crise da morte
quando passamos do tempo para a eternidade.
O desafio posto a cada um não é como evitar as crises. Elas são inerentes à nossa
condição humana. A questão
é como as enfrentamos: que lições tiramos delas e como podemos crescer com elas. Por aí
passa o caminho de nosso auto realização e de nossa maturidade como seres
humanos ou de nosso fracasso.
Toda situação é boa, cada lugar é
excelente para nos medirmos conosco mesmo e mergulharmos em nossa dimensão
profunda e deixar emergir o arquétipo de base que carregamos (aquela tendência
de fundo que sempre nos martela) e que através de nós quer se mostrar e fazer
sua história que é também a nossa verdadeira história. Aqui ninguém pode
substituir o outro. Cada um está só. É a tarefa fundamental da existência. Mas
sendo fiel neste caminhar, a pessoa já não está mais só. Construiu um Centro
pessoal a partir do qual pode se encontrar com todos os demais caminhantes. De solitário faz-se solidário.
A geografia do mundo espiritual é
diferente daquela do mundo físico. Nesta os países se tocam pelos limites. Na
outra, pelo Centro. É a
indiferença, a mediocridade, a ausência de paixão na busca de nosso EU
profundo que nos
distancia de nosso Centro e dos outros e assim perdemos as afinidades, embora
estejamos ao lado deles, no meio deles e pretendendo estar a serviço deles.
Qual é o melhor serviço que posso
prestar às pessoas? É ser eu mesmo como ser-de-relações e por isso sempre
ligado aos outros, ser que opta pelo bem para si e para os outros, que se
orienta pela verdade, ama e tem compaixão e misericórdia.
A realização pessoal não consiste
na quantificação de capacidades pessoais que podem ser realizadas, mas na
qualidade, no modo como fazemos bem aquilo que a vida situada nos cobra. A
quantificação, a busca de títulos, de cursos sem fim, pode significar em
muitas pessoas a fuga do encontro com a tarefa de sua vida: de se medir consigo
mesmo, com seus desejos, com suas limitações, com seus problemas, com suas
positividades e negatividades e integrá-los criativamente. Foge no acúmulo do
saber inócuo que mais ensoberbece e afasta dos outros do que nos amadurece para
poder compreender melhor a nós mesmos e o mundo. A linguagem trai estas pessoas
que dizem: sou eu que
sei, sou eu que
faço, sou eu que
decido. É sempre o eu e
nunca o nós ou
a causa, comungada também por outros.
A realização pessoal não é obra
tanto da razão que discorre sobre tudo, mas do espírito que é nossa capacidade
de criar visões de conjunto e de ordenar as coisas em seu justo lugar e valor.
Espírito é descobrir o sentido de cada situação. Por isso é próprio do espírito
a sabedoria da vida, a vivência do mistério de Deus, decifrado em cada momento.
É a capacidade de ser todo em tudo o que faz. Espiritualidade não é uma ciência
ou uma técnica, mas um modo de ser inteiro em cada situação.
A primeira tarefa da realização pessoal é aceitar a nossa situação com
seus limites e possibilidades. Em cada situação está tudo, não
quantitativamente distendido, mas qualitativamente recolhido como num Centro.
Entrar nesse Centro de nós mesmos é encontrar os outros, todas as coisas e
Deus. Por isso dizia a velha sabedoria da Índia: “Se alguém pensa corretamente,
recolhido em seu quarto, seu pensamento é ouvido a milhares de quilômetros de
distância”. Se quiseres modificar os outros, comece por modificar-te a ti
mesmo.
Outra tarefa imprescindível para a
realização pessoal é saber conviver com o último limite que é a morte. Quem dá sentido à morte, dá
sentido também à vida. Quem não vê sentido na morte também não descobre
sentido na vida. Morte, porém, é mais que o último instante ou o fim da vida. A
vida mesma é mortal. Em outras palavras, vamos morrendo lentamente, em prestações, porque quando nascemos começamos
já a morrer, a nos desgastar e nos despedir da vida. Primeiro nos despedimos do ventre materno
e morremos para ele. Depois nos despedimos da infância, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de
cada momento que passa e por fim nos despedimos da própria vida.
Esta despedida é um deixar para
trás não apenas coisas e situações, mas sempre um pouco de nós mesmos. Temos que nos desapegar, nos
empobrecer e esvaziar. Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade
irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo, até de
nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos feitos para esse
mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro que deve encher nossa vida:
Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo para nos reservar cada vez mais
intensamente para si; pode até tirar-nos a certeza se tudo valeu a pena. Mesmo
assim persistimos, crendo nas palavras sagradas: ”Se teu coração te acusa,
saiba que Deus é maior que teu coração”(cf. 1 Jo 3,20 ). Quem conseguir
incorporar as negatividades, mesmo injustas, em seu próprio Centro, este
alcançou o mais alto grau de hominização e de liberdade interior.
As negatividades e as crises pelas
quais passamos, nos dão esta lição: de nos despojar e de nos preparar para
a total plenitude em Deus. Então, como diz o místico São João da Cruz: seremos
Deus, por participação.
Leonardo
Boff é colunista do Jornal do Brasil online, ecoteólogo e escritor
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