terça-feira, 18 de agosto de 2015

Antônio David: Safatle não quer contextualizar a corrupção e crítica os que o fazem - Viomundo

Antônio David: Safatle não quer contextualizar a corrupção e crítica os que o fazem

publicado em 15 de agosto de 2015 às 19:55
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Mais uma vez, Vladimir Safatle produziu uma caricatura
por Antônio David, especial para o Viomundo
Em seu mais recente artigo naFolha de São Paulo, Vladimir Safatle produziu mais uma caricatura.
Focado no problema da corrupção no Brasil, ele argumenta:
“Quando os escândalos de corrupção estouraram de forma sistemática, não foram poucos os que procuraram ‘contextualizar’ o problema, como se dar muita importância a eles fosse fazer o velho jogo do moralismo udenista. “Focar tudo no problema da corrupção é uma pauta da direita.”
Alguns não temeram em dizer que a corrupção era um dado intrínseco do capitalismo, não para porventura mudar o capitalismo, mas para tentar vender a ideia de que ela seria o preço a pagar para se operar no interior das falhas da democracia parlamentar.
Nessa explicação funcionalista crassa, havia uma dose inacreditável de cinismo. A descrição não servia para aumentar a indignação e recusa contra um sistema corrompido, no qual a política se submete aos interesses econômicos do momento, mas para justificar a acomodação subjetiva à lama”.
Contextualização
Safatle não quer contextualizar o problema e crítica os que o fazem. Para ele, contextualizar merece aspas. Reduzida a prática “cínica”, o ato de contextualizar não passaria de um grande pretexto, mera e disfarçada justificativa da corrupção.
Colocando o problema nestes termos, Safatle ignora haver, entre os que contextualizam, aqueles que o fazem para justificar a corrupção, como ele bem nota, e aqueles que o fazem para melhor combatê-la – ou seja, o exato oposto dos primeiros. Ignora, portanto, haver entre os que contextualizam abordagens não só diferentes, como antagônicas.
Como explicar tamanha lacuna no discurso de um filósofo tão inteligente e sagaz? O que aparenta ser uma derrapagem é, na verdade, um ato deliberado. É justamente para evitar discutir com os segundos que Safatle os colocou no mesmo saco dos primeiros. Taxando-os todos de justificadores da corrupção, inclusive aqueles que visam a combater a corrupção, Safatle induz o leitor a crer que nem vale a pena debater com eles.
Com isso, ao invés de enfrentar outros pontos de vista – o que se esperaria de um intelectual –, ele sutilmente concede a si mesmo o direito de não debater. Ele espera que o leitor pense que apenas o seu ponto de vista é coerente com a luta contra a corrupção, sendo todos os outros com ela coniventes – embora não o sejam. Trata-se, em suma, de um expediente retórico, marcado por certo deficit de honestidade.
“É por pensar assim que estamos nesta situação”
A tarefa que Safatle coloca-se para si mesmo não é pequena. Argumenta Safatle: “’contextualizar’ a corrupção é mostrar uma ignorância fundamental a respeito do que é a política”. Na contramão dos contextualistas, Safatle nos ensinará nada mais nada menos o que é a política – a despeito de sua curta experiência politica não ter sido exatamente bem-sucedida. Sua narrativa supostamente pretende “aumentar a indignação e a recusa contra um sistema corrompido”. Reparem bem: contra um sistema corrompido. Terá ele conseguido?
Não farei uma longa análise do discurso de Safatle. O parágrafo adiante – no qual ele faz menção à prática de denunciar a corrupção alheia sem criticar a própria corrupção – é suficiente para mostrar que Safatle acaba passando longe do “sistema corrompido”.
Todos nós conhecemos bem esses raciocínios. Mas não, meus amigos, a corrupção do seu partido do coração não é ‘outra coisa’. Ela é a ‘mesma coisa’. É por pensar assim que estamos nesta situação. Ela só terminará quando o último corrupto petista for enforcado nas tripas do último corrupto tucano”.
Ou seja, não são as instituições legadas por nossa formação social e enraizadas num país marcado por profunda desigualdade econômica e social o que, ao fim e ao cabo, produz a corrupção; o que produz a corrupção é o fato de “pensarmos assim”. “É porque pensamos assim que estamos nessa situação” (o destaque é meu). Supostamente, na Alemanha há menos corrupção porque os alemães pensam diferente.
Para quem ia nos ensinar o que é a política, chega a ser ridículo.
Se “estamos nessa situação” porque “pensamos assim”, a solução não poderia ser outra: a corrupção “só terminará quando o último corrupto petista for enforcado nas tripas do último corrupto tucano”. Em suma, uma vez que existe corrupção porque existem corruptos, basta eliminar os corruptos para que a corrupção acabe.
Como se sabe, o moralismo da antiga UDN caracterizava-se exatamente por imputar a corrupção inteiramente às pessoas – ignorando que, além das pessoas, as instituições no Brasil são corruptas – e por promover a ideia de que, para acabar com a corrupção, bastaria afastar os corruptos e colocar no lugar pessoas íntegras.
Entende-se melhor agora porque seu artigo começa com a frase: “Quando os escândalos de corrupção estouraram de forma sistemática, não foram poucos os que procuraram ‘contextualizar’ o problema, como se dar muita importância a eles fosse fazer o velho jogo do moralismo udenista”. Trata-se de uma defesa prévia.
Já o “sistema corrompido” permaneceu intocado na análise de Safatle.
Governar?
O problema maior está, no entanto, na frase que fecha o artigo: “Por isso, vale a pena começar a governar devolvendo a diária do segundo quarto”, ou seja, governar sem incorrer em práticas corruptas.
É possível governar sem incorrer em práticas corruptas?
Se por práticas corruptas entendermos ganhos pessoais, sim, é possível. Mas essa é uma visão extremamente limitada do problema, que não toca no aspecto sistêmico da corrupção. Agora, se por práticas corruptas entendermos, no caso do governo, o conjunto de práticas envolvidas no conceito de governabilidade, inclusive aquelas que se exige para que um governo tenha maioria no Congresso Nacional, depende.
Não ignoro que na Islândia ou na França seja mais fácil “governar devolvendo a diária do segundo quarto”. Mas, a não ser que sejamos adeptos de um pensamento colonizado, quando falamos no Brasil cabe olharmos para o Brasil, cabe pressupormos uma dada formação social e seu legado, que persiste no presente. Cabe olhar para as instituições que temos.
Em 2002, quando Lula foi eleito pela primeira vez e havia uma correlação de forças menos desfavorável para a esquerda, posto que não havia o desgaste de quatro mandatos presidenciais, se Lula “devolvesse a diária do segundo quarto” – ou seja, se ele não fizesse alianças para ter maioria no Congresso e, consequentemente, não distribuísse cargos –, ele governaria? Não posso afirmar categoricamente que não, mas essa é a resposta mais provável.
O ponto é que, se a total recusa à corrupção é um princípio inegociável, cabe à esquerda duas alternativas: 1) ou bem pensar no significado político de chegar ao poder e não governar; 2) ou bem formular uma estratégia capaz de governar sem praticar atos ilícitos nem ser conivente com tais práticas, mas combatê-las – o que significa, entre outras coisas, não aliar-se com corruptos e ter o Congresso Nacional quase inteiramente contra o executivo.
Ocorre que essa estratégia não foi formulada, ao menos não depois da derrota de 1989. Nem o PT não conseguiu formulá-la – e o governo está pagando o preço por isso –, nem os partidos à esquerda do PT conseguiram, motivo pelo qual toda e qualquer crítica ao PT vinda da esquerda só é coerente e só merece ser levada a sério se vier acompanhada de uma autocrítica. Isso vale tanto para agrupamentos, como também para intelectuais.
Não tendo sido formulada essa estratégia, a frase “governar sem devolver a segunda diária”, que fecha o artigo de Safatle, simplesmente não faz sentido. Faz sentido no papel, não na prática. É mais uma de suas peças retóricas. Na prática, “devolver a segunda diária” hoje equivale a não governar – a alternativa (1) dentre as duas alternativas mencionadas.
Se tivesse defendido a tese de que a esquerda não deve dispor-se a governar, mas apenas a denunciar o sistema – não é o caso –, Safatle não teria feito uma crítica elevada, mas ao menos ele teria sido coerente. A conclusão estaria de acordo com as premissas. Esse é talvez o caso do PSTU. Mas, ao contrário do PSTU, Safatle quer governar! Nesse caso, uma crítica elevada e assertiva deveria pensar na estratégia capaz de governar sem a governabilidade ao invés de simplesmente pressupor, de maneira inacreditavelmente ingênua, que basta ter uma moral íntegra para governar sem a governabilidade e enfrentar todo tipo de resistência, boicote, sabotagem, golpes e atos violentos vindos da direita. O que Safatle propõe para que a esquerda se jogue nessa empreitada? Nada.
Claro que ele poderá dizer que isso já acontece hoje. Este seria mais um dos bordões retóricos bonitos de se ler, mas sem nenhum lastro na realidade. A situação por que passa o governo Dilma no atual momento é brincadeirinha de criança perto de um governo de esquerda com a opção clara e definida de governar sem o Congresso. O discurso de Safatle é tão abstrato que não serve nem mesmo para o governo Dilma – um governo de conciliação – enfrentar a direita.
Aqui voltamos ao ponto inicial. Safatle não tem nada a propor em termos de estratégia porque o ato de pensar em uma estratégia que permitisse governar contra as práticas corruptas – ou seja, contra 90% do Congresso – exige a capacidade de contextualizar. Exatamente aquilo que Safatle faz questão de explicitamente recusar.
Se Safatle tivesse interesse em ler e discutir com o autor do presente artigo, e como para ele tudo se resume à dicotomia coragem x covardia – como ele próprio declarou em outra ocasião –, certamente ele produziria uma peça retórica para convencer seu público de que este artigo é um grande blá-blá-blá que no fundo tenta oferecer desculpas para aquilo que na verdade não passa de uma covardia disfarçada. Em suma, do ponto de vista de Safatle, eu seria um grande covarde.
Por isso, feita a crítica ao neoudenismo de Safatle, penso que é chegado o momento de afirmar algumas coisas. É possível governar sem o Congresso? Sim. E qual é a estratégia? Não há uma estratégia formulada. A esquerda tem condições de formular? Sim. Safatle contribui com essa formulação? Não só não contribui como atrapalha.
Aqui é que reside o grande desserviço de sua abordagem. A esquerda não tem conseguido formular uma estratégia à altura dos desafios impostos pela nossa formação social e as razões disso são muitas e são complexas. Não é porque a esquerda é viciosa. Mas uma das razões, que não é sequer a mais importante, é a persistência do moralismo em certas visões de política ainda presentes na esquerda. É o velho bordão “basta ter vontade política” renovado.
Safatle é um moralista convicto, mas seu moralismo não é ordinário, é radical. A visão moralista que Safatle faz da política é tal que ele interdita o debate sobre estratégia. Quem lê seus artigos e acredita no que ele escreve não só não vê razão alguma para tomar parte em debate algum sobre estratégia como, vendo nesse debate apenas um grande pretexto para justificar o injustificável, vê razões para atacar toda e qualquer estratégia e todos aqueles que se engajam nessa tarefa, em nome – que vergonha! – de um abstrato “bem comum”. É o que Safatle reiteradamente faz em seus artigos: sem citar nomes, ele ataca quem se dispõe a pensar.
Mais uma vez, Safatle não produziu uma crítica, mas uma caricatura.
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