Quarta, 24 de junho de 2015
“Reduzir maioridade penal pode agravar a violência"
Vinte e cinco anos após a
criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma comissão especial da Câmara dos Deputados deu aval à redução da
maioridade penal de 18 para 16 anos em casos de
crimes violentos. A aprovação da emenda à Constituição foi na última
quarta-feira 17, em uma sessão fechada ao público - para escapar de protestos. Padrinho do projeto, o
presidente da Câmara, Eduardo
Cunha, promete submeter o tema a votação em 30 de junho.
A entrevista é de Rodrigo Martins, publicada por CartaCapital,
23-06-2015.
Pela proposta, adolescentes com 16 anos ou mais podem ser punidos como
adultos por crimes hediondos, estupro e latrocínio incluídos, ou equiparados, a
exemplo do tráfico de drogas e da tortura. Também podem ser encarcerados em
penitenciárias comuns por lesão corporal grave, homicídio doloso e roubo
qualificado, quando há uso de arma, participação de duas ou mais pessoas ou
restrição da liberdade da vítima, por exemplo. Antes de seguir para o Senado, o
projeto precisa do apoio de 60% dos deputados, em dois turnos de votação.
Em diversas ocasiões, o Unicef
e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime manifestaram oposição à redução da maioridade. “Não faz sentido jogar os 20 mil jovens que hoje cumprem medidas
socioeducativas com restrição de liberdade nos presídios convencionais,
controlados por organizações criminosas. Ao sair desse sistema, teríamos jovens ainda mais violentos e,
possivelmente, associados a alguma facção”, afirma Casimira Benge,
coordenadora do programa de proteção à criança do Unicef no Brasil.
Eis a entrevista.
Faz sentido atribuir a escalada da violência no Brasil aos adolescentes?
Na verdade, os adolescentes são
muito mais vítimas de violência do que autores. Dos 21 milhões de brasileiros entre
12 e 18 anos
incompletos, apenas 0,013% cometeram crimes contra a vida. Mas a cada hora um adolescente é
assassinado. Neste quesito, o Brasil só perde
para a Nigéria. O Unicef monitora a situação com o Índice de
Homicídios na Adolescência. Em 2005, fizemos uma projeção de que 35 mil
adolescentes seriam assassinados entre 2006 e 2012. Infelizmente, o tempo
mostrou que o diagnóstico estava bem próximo da realidade: 33,6 mil pessoas
dessa faixa etária morreram no período. Agora, a previsão é ainda mais sombria.
Se as condições atuais prevalecerem, 42 mil jovens serão mortos de 2013 a 2019
antes de completar a idade adulta.
Por que o Unicef se opõe à
redução da maioridade penal?
Reduzir a maioridade não é uma solução. Ao contrário,
pode agravar a violência. Passaríamos a considerar como adultos todos os
jovens com 16 anos ou mais. Ou seja, o processo para a responsabilização, a
natureza da punição a ser aplicada e o lugar para o cumprimento da medida serão
iguais aos de um adulto. Não faz sentido jogar os 20 mil jovens que hoje
cumprem medidas socioeducativas com restrição de liberdade nos presídios
convencionais, controlados por organizações criminosas. Ao sair desse sistema, teríamos jovens ainda mais
violentos e, possivelmente, associados a alguma facção. Em vez de remediar o problema,
corremos o sério risco de agravá-lo. Além disso, não podemos perder de
vista que, dentro das
prisões, esses adolescentes podem sofrer graves violações. Há até um
problema logístico. Os
presídios já sofrem com falta de vagas. Sem falar dos reflexos da
maioridade para um conjunto de outros direitos.
Como assim?
O Brasil é um dos recordistas
mundiais em mortes no trânsito. Pela atual legislação, a permissão para conduzir um
automóvel só pode ser
concedida a quem tem mais de 18 anos, pois o motorista tem de ser
imputável, caso venha a cometer algum crime na direção do veículo. Se a
maioridade for reduzida, os
adolescentes com mais de 16 anos poderão conquistar o direito de dirigir.
E sabemos que o número de acidentes é muito maior entre os motoristas mais
jovens. Pior: eles podem
ter acesso a bebidas alcoolicas e cigarro. Em decorrência disso, é possível até haver um aumento dos
casos de crimes sexuais.
Qual é a tendência mundial em relação a este tema?
Os países são livres para adotar seus próprios critérios. A maioria das nações estabelece
como idade mínima para a responsabilização os 12 anos de idade, mas a maioridade penal completa, o
momento em que o cidadão passa a ser punido como um adulto, é quase sempre aos 18 anos. São raras as
exceções, a exemplo dos EUA, onde cada estado tem autonomia para definir a
regra, mas normalmente a maioridade começa antes dos 18. Mas vale lembrar que
os americanos começam a reavaliar essa postura, pois diversos estudos indicam
que o encarceramento precoce não garante a redução da violência. Em vários
países, como Colômbia, Espanha, Uruguai, Chile, houve grandes debates sobre a redução da maioridade, mas nenhum deles baixou de fato. Em vez disso, criaram
regimes especiais para adolescentes com idade entre 16 e 18 anos, numa linha
semelhante do que o Executivo brasileiro propõe agora.
A senhora considera uma alternativa razoável a proposta de aumentar o
tempo de internação dos adolescentes infratores?
Acho razoável aumentar o tempo de internação de quem pratica crimes mais
graves, como homicídio, latrocínio, estupro e sequestro. Desde que isso ocorra em um regime
diferenciado dos adultos. Somos contra a redução da maioridade, mas
reconhecemos que o Brasil precisa dar uma resposta à violência, inclusive
aquela praticada por adolescentes. É possível responsabilizar com mais rigor os
infratores sem necessariamente tratá-los como adultos, que tem outro grau de
maturidade e capacidade de discernimento. Isso pressupõe respeitar a justiça
especializada e a proporcionalidade dos crimes.
Dados do Ministério da Justiça revelam que 60% dos adolescentes internados para cumprir
medidas socioeducativas são
negros, 51% não frequentava a escola, 49% não trabalhavam e 66% vinham
de famílias extremamente pobres.
Exatamente. É
preciso ter cuidado para não criminalizar a pobreza. Nem todos que vivem
em situação de vulnerabilidade social praticam crimes. Mas muitas vezes
adolescentes pobres, que vivem nas periferias, sem perspectiva de futuro, são
seduzidos pelo tráfico e acabam presos com pequenas quantidades de droga. É até
complicado separar o usuário do traficante. Normalmente, se esse adolescente é
pobre, vai preso. Se é rico ou tem emprego fixo, é considerado um usuário.
Muitos desses adolescentes pobres nem sequer têm uma assessoria técnica
adequada durante o processo. As defensorias públicas não conseguem atender toda
a demanda. Mas precisamos admitir que o Estatuto da Criança e do Adolescente é muito brando em alguns casos, assim como tem um rigor excessivo em
outros. Um pequeno traficante corre o risco de ficar internado por três anos, a
mesma punição máxima de quem mata.
Isso seria capaz de reduzir os índices de violência?
Não adianta mudar a legislação sem um conjunto de políticas públicas
para a juventude, como acesso à educação, à saúde, à cidadania. Se isso não for
garantido aos adolescentes, nenhum projeto punitivo será capaz de resolver o
problema da violência. É triste ver essa proposta de redução da maioridade
emergir 25 anos após aprovação do ECA pela Câmara. A mesma Casa que
aprovou uma avançada legislação especializada, considerando as crianças e
adolescentes como sujeitos de direitos, influenciando outros países, agora pode
promover um grande retrocesso.
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