sábado, 16 de maio de 2015

Precisamos falar sobre o rancor

Precisamos falar sobre o rancor

No momento em que o resultado da participação popular começa a ameaçar os históricos desníveis sociais, a palavra muda de sentido. Quando o voto chancela a desigualdade, é democracia; quando afronta privilégios, é demagogia.        
       

       15/05/2015
Por João Paulo Cunha*

De uma hora para outra o ódio entrou em cena na política. Não que estivesse ausente, mas era tomado como um erro, um desvio indevido num cenário de falsa pacificação social.
O filósofo francês Jacques Rancière chegou a publicar um livro, Ódio à democracia, que mesmo escrito para a realidade de seu país, pode ser lido como um manual para entender o Brasil de hoje. A tese do autor é que há um discurso duplo sobre a democracia.
De um lado, todos são a favor da eleição direta contra a sanha das ditaduras. Mas no momento em que o resultado da participação popular começa a ameaçar os históricos desníveis sociais, a palavra muda de sentido.
Quando o voto chancela a desigualdade, é democracia; quando afronta privilégios, é demagogia. O ódio à democracia é uma espécie de alergia de povo. Desde que deixou para trás certo constrangimento, o desprazer das elites (ou que se consideram como tais) em conviver com o povo vem sendo traduzido em chave pretensamente política.
O que sempre foi preconceito e desconforto em testemunhar a melhoria geral das condições de vida foi transformado em atitude consciente de oposição ideológica. Com isso, a sociedade se dividiu não entre distintas visões de mundo, mas de postura frente às transformações.
Há uma parte que quer dar continuidade à desconcentração de renda e poder, e outra que quer, reativamente, recuperar privilégios.
As ciências sociais e a economia sempre tiveram dificuldade em entender a relação entre infraestrutura e superestrutura, entre a base material e sua tradução cultural. Para alguns, a raiz de tudo estava na economia; para outros, sempre é possível que as transformações também possam partir da ação dos homens em dimensões mais simbólicas.
O tema ajuda a recolocar os impasses vividos hoje no Brasil. Por um lado, a inegável distribuição de renda melhorou a vida das pessoas. Por outro, o sentido dessa mudança na economia não se dá de forma única.
Há os satisfeitos, os insatisfeitos, os revoltados, os que querem ainda mais e até os que desejam voltar no tempo e recuperar a dinâmica da casa-grande e senzala. E há os rancorosos. Esses são, talvez, os piores.
Eles não querem apenas recuperar o que acham que mereciam por um questionável direito de classe, mas impedir que os outros ganhem. Em sua doentia percepção da realidade, permitir a ascensão é vedar a continuidade do mundo como o concebem.
A igualdade é para eles um defeito de civilização. As situações nas quais o rancor se manifesta são muitas: o ataque às políticas distributivas, a demonização de todas as ações de inclusão, a baixa tolerância à convivência com a diversidade, a transformação da meritocracia em estratégia de classe (não vale para todos, apenas para os “mais iguais”), o reforço do moralismo expresso na condenação de toda a atuação do setor público em favor dos investimentos sociais.
Na vida privada, o rancoroso quer distância do pobre; no campo profissional, não aceita competir com ele (até por medo de perder); na arena pública desqualifica todos os instrumentos de ascensão social. O rancoroso não gosta de gente, não confia na sua competência e é antidemocrata. Existe uma distinção entre o rancor e o ódio. Se o ódio é destrutivo, quer a anulação do outro, o rancor é ainda mais complexo: aceita até mesmo se autodestruir, desde que seu inimigo vá junto para o inferno.
O Brasil de hoje - e o Congresso, a classe média e a imprensa vêm dando prova disso - se tornou um país rancoroso. Homens públicos como Aécio Neves e FHC ameaçam a política com a oposição mecânica, mesmo que para isso seja necessário que se contradigam de forma amnésica; grupos como o dos evangélicos conservadores reforçam a cisão social com a retomada do preconceito, ainda que sejam vistos como moralmente tacanhos; a imprensa familiar faz uso da mentira como forma de alimentar a opinião pública e com isso arrasta sua credibilidade para o buraco.
O rancor lança mão de uma estratégia suicida, como a dos homens-bomba, que se matam sonhando com sete mil virgens. Assim como o ódio à democracia deve ser combatido com a verdadeira democracia, o rancor também precisa ser enfrentado radicalmente. A boa política só tem chance num território habitado por boa gente. O que, é preciso reconhecer, não vai ser fácil.

*João Paulo Cunha é jornalista

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