terça-feira, 24 de março de 2015

O suicídio da mídia brasileira - Emir Sader

O suicídio da mídia brasileira

15 03 23 Emir Sader Suicídio da mídia
Por Emir Sader.
A mídia tradicional brasileira é um cadáver. Um cadáver moral, um cadáver de bom jornalismo, um cadáver de boa informação, um cadáver de pluralismo, um cadáver de honestidade e de dignidade.
Como essa mídia chegou a esse ponto? Como rifou a credibilidade e o papel importante que (ao menos alguns de seus órgãos) já teve na democratização do pais?
É certo que vários fatores contam para a decadência irreversível da mídia. Entre eles a internet, sem dúvida, e com ela toda a mudança de hábitos em relação a veículos impressos – tanto jornais quanto revistas encontram-se em processo acelerado de extinção –, mas também ao peso decrescente da televisão (considerando tanto uma redução de sua audiência quanto da credibilidade do seu jornalismo).
Mas a débacle acelerada da mídia no Brasil tem outros fatores que aceleraram e decretaram sua morte. No essencial, o desencontro entre a mídia e o país, os destinos escolhidos e reiterados pelo povo brasileiro e as posições conservadoras de mídia brasileira.
A mídia já tinha se desencontrado da democracia, quando apoiou as mobilizações desestabilizadoras que levaram ao golpe de 1964, que essa mesma mídia saudou como a salvação da democracia, embora se tratasse da instalação da mais brutal e duradoura ditadura que o Brasil já conheceu. Foi, até ali, o pior momento vivido pela mídia, comprometendo-a com o que de pior tinha o país, que iria infelicitá-lo por muito tempo, com consequências até hoje.
Todos os jornais que ainda andam por aí – Folha, Estadão, Globo, entre outros – se comprometeram com o fim da democracia e a instauração da ditadura. A Abril se incorporaria depois, com relações umbilicais com a ditadura também.
Esses órgãos nunca conseguiram se livrar dessa pecha. O Globo tentou uma autocritica, inverossímil, a tal ponto que recém fez um editorial similar àquele com que saudava “a salvação da democracia” em abril de 1964. A Folha passou por uma desastrada operação de tentar enfraquecer o caráter repressivo da ditadura – chamando-a de “ditabranda” – como que para justificar suas relações carnais com a ditadura, a ponto de emprestar carros da empresa para disfarçar operações repressivas dos órgãos da ditadura. Teve que recuar, quando se deu conta do desastrado da operação que tentava.
No fim da ditadura toda a mídia acreditou que, apoiando a transição democrática, virava a pagina da ditadura e do seu passado nela. Todos éramos democratas a partir dali. O próprio caráter conciliador e ecumênico da transição parecia passar diploma de liberal a todos os que se distanciassem minimamente da ditadura – até o ACM e o seu PFL.
A eleição de Fernando Collor serviu para que a mídia – em sua quase totalidade – tratasse de se localizar do lado da nova modernidade, contra a velha esquerda, esclerosada, jurássica, estatista. Se distanciava da incomoda polarização democracia/ditadura, para situar-se no marco das dicotomias que o neoliberalismo colocava – estatal/privado.
A euforia voltava a tomar conta de boa parte da mídia, que erigia em Collor seu novo herói, que salvava a direita brasileira tanto do Lula, quanto do Brizola. Com a queda do Collor a euforia se transferiu para o FHC. Consolidava-se o cenário neoliberal, longe daquele da ditadura e da transição democrática.
O fracasso de FHC foi fatal para o destino futuro da mídia. Porque além de perder seu ídolo maior, teve que encarar o desafio que ela não soube enfrentar: o governo Lula. Quando acreditava que tinha se livrado desse desafio, com as duas vitorias sucessivas do FHC, veio o fantasma do Lula – que consolidou o desencontro da mídia com o país.
Não é um problema de compreensão, mas de interesses e de ideologia. A grande mídia, como conjunto de empresas que vivem de publicidade, tem o rabo preso com estas, que mantem essas empresas. Além disso, foi sempre o órgão das elites dominantes ao longo da historia do país.
Saiu da ditadura abraçando a versão liberal da transição, aquela que militava na democratização pelo restabelecimento do Estado de Direito sem qualquer transformação mais profunda das estruturas de poder herdadas da ditadura. E, com Collor e FHC, aderiu à versão neoliberal do liberalismo.
Lula representava exatamente o oposto. Passou a revalorizar o Estado em detrimento da centralidade do mercado pregada pelo neoliberalismo e pela mídia. Colocava o acento nas politicas sociais e não nos ajustes fiscais. Deslocou a prioridade das alianças do Brasil do Estados Unidos, da Europa e do Japão, para a América Latina e para o Sul do mundo.
A incapacidade de assimilar Lula – o que significaria uma impossível autocrítica por parte da mídia – levou-a a se assumir como força opositora frontal, ao mesmo tempo que negava as transformações positivas que o Brasil viveu desde 2003 e se dissociou do povo e do país. Essa atitude acabou sendo decisiva para o suicídio da grande mídia brasileira.
Sacrificaram qualquer objetividade informativa, qualquer possibilidade de ser um espaço de debate pluralista, reservando suas posições apenas para os editorias. Ao contrario, editorializaram tudo, negaram a realidade, atuaram como mídia partidária do bloco opositor. Foram assim não apenas perdendo audiência, mas perdendo credibilidade também.
Hoje concentram sua atuação como força partidária da oposição tentando inviabilizar a continuidade dos governos do PT – seu maior objetivo. Concentram campanhas de terrorismo econômico, de denuncismo de escândalos, de tentativa de desestabilização política, convocando manifestações contra o governo Dilma. O que acelera ainda mais a crise final da mídia impressa e a perda de credibilidade da radial e televisiva.
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A Boitempo acaba de reeditar o clássico Estado e política em Marx, de Emir Sader. Confira o depoimento abaixo, em que Sader relembra o contexto da defesa e publicação desta que foi a primeira tese sobre Marx defendida na USP:
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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Publicou, entre outros,Estado e política em MarxA nova toupeira e A vingança da históriaColabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

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