Quinta, 08 de janeiro de 2015
Reforma agrária: entenda a disputa entre ministros Kátia Abreu e Patrus Ananias
As primeiras declarações dos novos
ministros Kátia Abreu (Agricultura) e Patrus Ananias
(Desenvolvimento Agrário) colocaram em evidência as diferenças que existem entre as duas pastas.
Enquanto o Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (MAPA) tem historicamente foco maior nos grandes
produtores, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) funciona como o
contraponto, dando especial atenção à população rural mais pobre.
A reportagem é de Mariana
Schreiber, publicada por BBC Brasil, 07-01-2015.
Estridente e polêmica, Abreu jogou a tensão
no ventilador ao declarar ao jornal "Folha de S.Paulo", em entrevista
publicada na segunda-feira, que "latifúndio não existe mais" no país e que a
reforma agrária deve ser "pontual, para os vocacionados [para o
campo]".
Na terça-feira, Ananias reagiu em seu
discurso de posse, ao dizer que "ignorar ou negar a permanência da desigualdade e da injustiça é
uma forma de perpetuá-las". "Por isso, não basta continuar
derrubando as cercas do latifúndio; é preciso derrubar também as cercas que nos
limitam a uma visão
individualista e excludente do processo social", disse.
Reiteradas vezes ele destacou a
importância de se cumprir a "função social" da propriedade, preceito previsto na Constituição segundo o qual o
imóvel rural deve ser
produtivo, preservar o
meio ambiente e cumprir
as leis trabalhistas. Caso
contrário, tem de ser desapropriado para reforma agrária, afirma a Carta Magna.
O consultor Rui Daher, da
Biocampo Desenvolvimento Agrícola, nota que a diferença entre os dois
ministérios não é de hoje. Ele observa que "o Ministério da Agricultura
tem um aspecto mais burocrático, regulatório, que atende mais às reivindicações
de recursos e financiamento para grandes culturas de exportação".
Em outras palavras, explica, a pasta
tem atuado "mais como se fosse uma subsidiária do Ministério da Fazenda
para distribuir recursos para a grande agricultura". Fora isso,
basicamente o órgão realiza a aprovação de novos insumos agrícolas e
agrotóxicos, acrescenta Daher.
"É uma estrutura que ficou muito
parada no tempo", afirma o especialista.
Daher destaca que o comando do Ministério da Agricultura está há anos nas mãos do PMDB (desde 2007), sendo
comandado por pessoas "pouco entendidas" na área. Ele considera que Kátia Abreu, apesar
de problemas graves como o desdém pelos povos indígenas, é um avanço sob esse
ponto de vista, pois conhece bem o setor.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário, por sua
vez, sempre esteve subordinado
ao PT desde que Lula assumiu a presidência em 2003. Sua atuação durante
todo o período se focou nas causas sociais, com especial atenção à reforma
agrária e aos pequenos produtores, que respondem por 80% das 5 milhões de
propriedades agrícolas, afirma o consultor.
"Esse segmento foi muito apoiado
nos últimos anos e, para dar continuidade a isso no segundo mandato da Dilma,
acredito que a melhor escolha que ela podia ter feito é do Patrus Ananias,
que já foi ministro do Desenvolvimento Social [onde desenvolveu o Bolsa
Família] e tem um viés muito mais voltado para esse lado".
Obrigação
O geógrafo e professor da USP Ariovaldo Umbelino,
especialista em reforma agrária, também frisa a diferença entre as duas pastas
e minimiza a relevância das declarações de Kátia Abreu. Segundo ele, a
reforma agrária é atribuição do MDA, enquanto o Ministério da Agricultura cuida
da "produção capitalista" e não deve intervir no assunto.
Ele destaca que a distribuição das terras que não
cumprem sua função social "não depende da vontade de ministro A ou B"
porque a Constituição Federal obrigada o governo a realizá-la.
Segundo o artigo 184 da Carta, "compete à União desapropriar por
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja
cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária".
Umbelino observa que a reforma agrária ganhou fôlego no primeiro mandato do
presidente Lula, mas perdeu ritmo no seu segundo mandato e no da
presidente Dilma Rousseff. Uma das justificativas da atual presidente
para a redução dos novos reassentamentos é que seu governo privilegiou a
melhoria da estrutura dos que já existem, garantindo mais acesso a recursos e
orientação técnica.
Na avaliação do especialista, o
ministro Patrus Ananias, nome histórico do PT, tem poder político para
fazer frente ao crescente prestígio de Kátia Abreu junto à presidente e
intensificar novamente esse processo. A ministra foi nomeada apesar da resistência
do próprio PMDB, que preferia a manutenção de Neri Geller no comando da
Agricultura.
A aproximação com entre as duas
começou quando Dilma ainda era ministra da Casa Civil e foi diagnosticada com
câncer em 2009. Segundo relato da senadora ao programa "Poder e
Política" do portal UOL, na ocasião ela escreveu uma carta à presidente se
solidarizando no processo de tratamento.
Depois disso, a ligação das duas se
intensificou quando Abreu foi recebida algumas vezes pela presidente na
condição de representante do setor agrícola, já que ela presidia a CNA.
"Os ministros todos têm poder
igual. Se a presidente vai escutar a ministra ou o ministro, aí é outra
história", disse Umbelino.
Diálogo
Apesar do claro embate entre os dois
novos ministros em torno da reforma agrária, ambos acenaram para o diálogo em
seus discursos de posse.
Abreu fez um pronunciamento na
segunda-feira muito mais conciliador do que a entrevista concedida à
"Folha de S.Paulo", na qual, além de negar a existência do
latifúndio, declarou que
os conflitos fundiários com indígenas ocorrem porque eles "saíram da floresta e passaram a
descer nas áreas de produção".
Já no seu discurso, a ministra, que é
odiada por ambientalistas, defendeu o uso sustentável da água e disse que
"há alternativas para produzir sem comprometer o meio ambiente". Além
disso, afirmou que seu ministério não fará segregação.
"Este será o ministério dos produtores rurais, sem nenhuma
espécie de divisão ou segregação, e das empresas. Será um ministério da produção.
Mas será acima de tudo um ministério do diálogo. Um ministério dos
brasileiros", afirmou Abreu, encerrando seu discurso.
Já Ananias, afirmou em seu
pronunciamento que o MDA vai "buscar ações concertadas com todos os
ministérios e órgãos públicos nacionais que tenham conosco áreas afins e
complementares". Brecha?
Rui Daher prevê uma convivência difícil e pouco harmoniosa entre os dois, mas vê
uma possibilidade de tanto Abreu quanto Ananias se abrirem para
um trabalho mais colaborativo.
"Acho que há uma grande vantagem
aí: a Kátia tem pretensões políticas
maiores, e o Patrus tem uma sensibilidade social muito
grande. Então, há uma possibilidade que ele faça a Kátia Abreu
sair desse reinado ruralista e descer até o lado das interações sociais. Por um
lado, a escolha (dos dois) tem um potencial que antes não existia",
analisa.
Além disso, vale notar que a própria
presidente Dilma Rousseff, conhecida pelo seu estilo centralizador e
gosto em intervir diretamente nos ministérios, quer puxar a atuação do
Ministério da Agricultura para a área social.
A presidente deu orientação direta à
nova ministra para que aumente a classe média rural. Katia Abreu assume
com uma meta objetiva de dobrar o tamanho da classe C no campo.
Hoje, segundo dados citados pela
ministra em seu discurso, 15% dos mais de 5 milhões de produtores rurais estão
na classe C, enquanto 70% estão na D e E. Abreu prometeu maior
assistência técnica e oportunidade aos pequenos produtores como caminho para
atingir o objetivo da presidente.
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