‘É FUNDAMENTAL UM PROGRAMA DE PAÍS QUE APONTE PARA ALÉM DAS ELEIÇÕES’
Escrito por Valéria Nader, da Redação
Terça, 06 de Maio de 2014
O Brasil se aproxima da Copa de 2014 e também das eleições presidenciais. Por esses dias, quanto
mais se chega perto desses esperados acontecimentos, mais se embaralha o cenário político.
Especialmente quando se está diante de uma imprensa, e dos grupos econômicos e políticos que a
monopolizam, que trazem uma avaliação tão parcial e distorcida da realidade.
Aos olhos dessa mídia e setores que a controlam, de um lado está a candidatura petista, irresponsável
frente aos cânones liberais do fiscalismo e monetarismo, além de populista em seu discurso própopulação
desfavorecida; de outro, textos e subtextos não escondem a quase aclamação aos candidatos
que nem mesmo se atêm a subterfúgios em sua defesa do mais retrógrado conservadorismo.
Os discursos dos candidatos mais notáveis ao cargo de presidente não agregam, por sua vez, nada de
positivo a esse cenário. Do lado do governismo, procura-se encarnar o “bem”, em contraposição ao
“mal” que adviria da eleição dos candidatos de oposição, representantes da direita tradicional. Já para
estes, circularia do outro lado do espectro político a incompetência administrativa e uma hipócrita
adesão aos pobres.
Em meio a esse faz-de-conta, alguns fatos podem ser tomados como bastante evidentes: a queda da
popularidade e apoio à candidatura petista e uma adesão geral, de todas as maiores candidaturas, sem
exceção, e a despeito da efervescência dos clamores populares, aos apelos do mercado.
É para avaliar este contexto, e aprofundar o entendimento dos acontecimentos neste momento préeleitoral,
que o Correio conversou com o historiador Mário Maestri, para quem “as administrações
petistas seguiram respeitando caninamente o grande capital e apostando na revolução do ‘mercado
social capitalista’, onde todos obteriam tudo, ou quase tudo, pagando tudo”.
O atual estado de mal humor da população, “raramente conhecido”, associa-se, para o historiador, à
disparidade entre “o país dos sonhos, formado por multidões de membros da classe média”, e as duras
condições de vida com que tem de fato se deparado a população.
Quanto à atual queda de apoio ao governo, Maestri acredita que tem resultado em mais exigências do
capital, “ainda mais além do já muito que recebe, para manter seu apoio, mesmo relativo: privatização
do petróleo, dos portos, dos aeroportos, das estradas; juros altos; financiamento público do capital
privado, arrocho salarial etc. Sonha em abocanhar a Petrobrás, a Caixa Econômica Federal, o
BNDES”. Trata-se, porém, de “crise de governo, e não de dominação”, em função de uma tendência ao
continuísmo, visto que “os candidatos da direita tradicional e da dissidência governista não encantam a
uma população que sonha com mudanças substanciais”.
Abaixo, a entrevista completa, onde o historiador fala também a respeito do atual estado da classe
trabalhadora do país, das perspectivas que se abrem para novas manifestações populares durante a
Copa e também das chances de avanço das forças progressistas e de um novo projeto de país nas
próximas eleições.
Correio da Cidadania: Qual sua visão da situação social e política atual do Brasil?
Mário Maestri: Vivemos tensão social crescente, para a surpresa da senhora presidenta e do bloco
dominante no governo, que anunciam baixo desemprego [em relação às taxas tradicionais]; aumento
[tímido] do valor dos salários; subvenção [misérrima] de segmentos populares pobres e paupérrimos.
Eles literalmente dormiram entoando gentis cirandas sobre país onde todos eram “classe média” e
acordaram abraçados no tigre da crise, que morde de maneiras jamais vistas.
Consolida-se realidade até hoje literalmente desconhecida. Populares cortam as ruas e as estradas,
apenas ainda sem a organização dos piqueteros argentinos. As incessantes violências policiais;
as interrupções dos trens e metrôs; o desabastecimento de água e de luz; os alagamentos urbanos
periódicos; os desalojamentos etc. resultam em manifestações explosivas, lutas de rua, incêndio de
viaturas e ônibus, literalmente a cada dia.
Ignoradas no passado como fato viral quotidiano, essas lutas expressam o desgosto de segmentos
populares e difundiram-se em forma irregular das megalópoles, com destaque para o Rio de Janeiro
e São Paulo, para o resto país, defrontando as forças policiais. As explosões da ira popular atingem
veículos da grande mídia e estabelecimentos bancários, em sinal de politização e de absorção de atos
marginais das grandes manifestações de 2013. Atos midiatizados ao extremo pelas redes televisivas,
com o claro objetivo de deslegitimar as mobilizações populares.
Também a classe trabalhadora organizada tem dado e vencido inúmeras e importantes greves, como o
movimento dos garis do Rio de Janeiro ou as paralisações nas arenas futebolísticas. Em Porto Alegre,
motoristas e cobradores pararam totalmente o transporte público, enquanto a Justiça do Trabalho
multava duramente sindicato rejeitado pelos grevistas.
Palpita entre a população nacional um mal-humor raramente conhecido, de profundidade difícil de
aquilatar.
Correio da Cidadania: A que devemos essa situação inusitada?
Mário Maestri: Na última década, o país conheceu modificações profundas. A população assalariada
estendeu-se e fortaleceu-se e recuaram as formas de produção e existência pré-capitalistas e prémercantis.
Nesse novo mundo onde tudo se paga, os aumentos salariais médios ultrapassaram de
pouco os ganhos anuais da produtividade, quando ultrapassaram, ganhos facilmente perdidos por
qualquer surto inflacionário, mesmo setorial.
No contexto de universalização de meios de antecipação da renda para facilitar o consumo
[cartões de crédito; empréstimos populares; crédito consignado], o mercado engoliu guloso, direta
ou indiretamente, mais e mais, serviços imprescindíveis, antes fornecidos em forma gratuita ou
subvencionada pelo Estado – luz, telefonia, transportes, segurança etc.
As administrações petistas seguiram respeitando caninamente o grande capital e apostando na
revolução do “mercado social capitalista”, onde todos obteriam tudo, ou quase tudo, pagando
tudo. Anunciaram o advento de país dos sonhos, formado por multidões de membros de classe média
que andariam de avião e teriam planos de saúde, enquanto enorme parcela da população suava para
pagar o ônibus; morria na fila do SUS; via esvair-se seus magros salários e aposentadorias antes que o
mês acabasse!
Simplesmente, deu no que tinha que dar. Degradação geral das condições de vida da população quanto
à saúde, ao transporte, à educação, à segurança, ao lazer, aos serviços, à mobilidade, à moradia Tudo
exacerbado pelo gigantismo urbano, fenômeno já nacional.
Correio da Cidadania: Essa nova realidade tem produzido consciência e organização popular?
Mário Maestri: A população trabalhadora vive sob enorme stress, sem conseguir consolidar avanços
gerais de organização e consciência. Para isso contribuiu a desmoralização dos sindicatos e partidos
populares, engolidos pelas benesses da colaboração com o Estado e o capital. Desmoralização para
a qual a grande mídia, a enorme e geral corrupção política e a privatização do Estado contribuem
incessantemente.
A população trabalhadora vive situação contraditória, entre a resistência, a submissão, a integração.
Por um lado, expressa a raiva em múltiplas e novas formas de resistência e dissidência. Por outro,
procura lenitivo para a dor social nas igrejas evangélicas e, robotizada nos comportamentos, sacrificase
no altar do consumo compulsivo e forçado. Organiza Rolezinhos e bailes funks, aos milhares.
Mergulha com gosto na alienação que não raro se esforça para superar.
Correio da Cidadania: Você enxerga chances de virada nesse cenário, como, por exemplo, a
mobilização popular transformar a crise econômico-social em crise política?
Mário Maestri: Já vivemos crise no bloco político burguês comandado pelo PT. A queda de apoio
ao governo permite que o capital exija ainda mais além do já muito que recebe, para manter seu
apoio, mesmo relativo: privatização do petróleo, dos portos, dos aeroportos, das estradas; juros altos;
financiamento público do capital privado, arrocho salarial etc. Sonha em abocanhar a Petrobrás, a
Caixa Econômica Federal, o BNDES.
Porém, trata-se de crise de governo, e não de dominação. Não há ameaça à gestão do Estado e às
instituições. Mais ainda, favorece no geral a tendência ao continuísmo o fato de que o candidatos
da direita tradicional e da dissidência governista não encantam a uma população que sonha com
mudanças substanciais e rejeita o mesmo prato com nomes diversos. Entretanto, é verdade o crescente
e acelerado desencanto da população com o governo dilmista
O coelhão que tentaram tirar da cartola mostrou-se menos confiável que Jânio Quadros e Collor
de Mello. Salvo a aceleração da queda do consenso em torno da presidenta, já bastante forte, a
principal tendência é o repeteco, em outubro, possivelmente em segundo turno, com próximo governo
comandado pela senhora Dilma Rousseff ainda mais subserviente ao grande capital e, paradoxalmente,
cada vez menos petista.
Correio da Cidadania: A movimentação social que se abriu no país desde as grandes
manifestações de 2013 pode vir a efervescer novamente este ano, por ocasião da Copa, antes,
portanto, das eleições?
Mário Maestri: O Mundial pode servir de gota d’água desbordando a crise. Acidentes
produzidos pela imprevidência pública e voracidade privada, como enchentes, epidemias, apagão,
desabastecimento de água, ações do crime organizado, etc., podem potenciar o stress popular. Ainda
mais que é geral a consciência da monumental corrupção e queima de recursos que a Copa constitui,
no contexto das abismais carências populares.
Diversas categorias profissionais, entre elas as polícias militares, pretendem servir-se da proximidade
da Copa para obterem conquistas que perseguem com dificuldade, ao igual do que feito na África do
Sul. O mesmo pode ser feito pelo crime organizado, para avançar pauta de reivindicações. E não é
de se descartar totalmente que facções da direita tradicional apostem na desconstrução da copa ou em
desestabilização controlada para golpear o governo Dilma Rousseff, Lula da Silva e o petismo.
Nos últimos tempos, a questão social tem voltado a ser tratada mais e mais como questão de
polícia. Com a proximidade da Copa, em dimensão que já lembra os tempos da ditadura militar,
o governo federal conta com que a euforia da competição galvanize a população e prepara-se para
sufocar manifestações residuais com enorme e faraônico aparato judicial, policial e militar. Se as
mobilizações engrossarem, mesmo medianamente, o reflexo repressivo pode ter consequências difíceis
de aquilatar, não apenas para as eleições.
Correio da Cidadania: Um tal cenário abriria perspectivas maiores para o avanço das
forças progressistas?
Mário Maestri: Não creio. As classes dominantes no Brasil são singularmente fortes, coesas e
mantêm pleno domínio da Justiça, do parlamento, do exército, das forças policiais, dos sindicatos
etc. Contam igualmente com o controle total dos meios de comunicação e com vasta hegemonia
político-ideológica. O mundo do trabalho no Brasil é singularmente frágil e não possui organizações
classistas.
O movimento Occupy ou dos indignados galvanizou a Espanha e os Estados Unidos, sobretudo, e
terminou evacuado sem glória pelo ralo dos movimentos sem direção e programa. O movimentismo
tem fôlego curtíssimo. Se as classes trabalhadoras e populares não criam direções sociais e políticas,
as classes exploradoras absorvem as explosões sociais frustrando avanços políticos, organizativos e
programáticos. O Egito é exemplo paradigmático desta realidade.
Se as classes trabalhadoras e populares não conseguirem criar direções consequentes para sua defesa
e para a luta pela superação do atual período, a sociedade seguirá afundando na barbarização social em
que o Brasil e o mundo engolfaram-se nas últimas décadas. Barbarização que começa a se precipitar
singularmente no Brasil.
Correio da Cidadania: O que é ou quais são os representantes da esquerda hoje no país, e como
poderiam enfrentar as eleições que se avizinham?
Mário Maestri: Como no resto do mundo, também no Brasil é dramática a necessidade de partido
e programa de classe para organizar os segmentos trabalhadores e populares. Porém, por razões
nacionais e internacionais, não contamos com um núcleo político-organizacional, pequeno que seja,
apontando nessa direção. E sua construção mostra-se extremamente complexa.
Vivemos sob a influência da contrarrevolução mundial iniciada nos anos 1990. No mundo dito
socialista, ela impôs a restauração do capital; no mundo capitalista, a regressão de conquistas históricas
e dissolução e decomposição de partidos, de organizações, de sindicatos etc. do mundo do trabalho.
A derrota histórica dos trabalhadores motivou grave regressão subjetiva, que tem como maior
expressão a perda de confiança do mundo do trabalho em seu programa como solução da crise
que vive. O mundo do trabalho não acredita na superação socialista da ordem capitalista. Essa
regressão histórica objetiva e subjetiva determina profundamente as organizações que se propõem
revolucionárias.
Correio da Cidadania: Como vê, nesse contexto, a perspectiva de ação política de partidos como
PSOL, PCB e PSTU?
Mário Maestri: A crise da esquerda marxista no Brasil exige uma análise detalhada e cuidadosa. Em
forma muito aproximativa e pontual, podemos dizer que, em formas diversas, todas essas organizações
foram profundamente tocadas pela regressão do mundo do trabalho ou nasceram nesse contexto
terrivelmente difícil.
O PSOL encontra-se no último caso. Após o impulso da luta contra a destruição petista da previdência
pública, rejeitou a proposta de direção do partido pelos núcleos e, portanto, de construção junto às
lutas sociais, e centrou-se na participação nas instituições burguesas e na conquista de senadores, de
deputados, de vereadores etc. São esses últimos que dominam hoje o partido. O projeto do PSOL
é a reforma, e não a superação do Estado burguês, com o qual mantém ligação umbilical. Mantém
diferenças de quantidade com o PT, mas não de qualidade. Sua atual chapa à presidência sintetiza essa
realidade.
O PSTU-LIT é organização brasileira de raízes argentino-morenistas, fundado há quatro
décadas. Construiu-se através do sindicalismo superestrutural e oficial brasileiro, incrustado no Estado
burguês. A legalização de sua central radicalizará essa dependência umbilical. Sua inserção sindical
superestrutural expressa-se na incapacidade de conquistar consenso eleitoral.
Sem raízes sólidas entre os trabalhadores, o PSTU-LIT vergou-se às terríveis pressões democráticoburguesas,
abandonando o programa do mundo do trabalho: combate a unidade sindical; abraça as
reivindicações setoriais [cotas raciais]; colabora subjetivamente com o imperialismo nos seus ataques
a Cuba, à Bolívia, ao Equador, à Venezuela. Radicalizando esse viés contrarrevolucionário, sustentou
politicamente a campanha imperialista na Líbia e, agora, propõe frente única com o imperialismo, do
qual exige mais armas para a contrarrevolução na Síria! [http://www.pstu.org.br/node/20077]
O PCB propôs progressista política de reconstrução partidária, que se propunha a necessária
reagrupação da esquerda classista no Brasil. No entanto, não consegue romper as amarras com o
passado. Propõe superação do popular-nacionalismo, mas o abraça ao reivindicar o espólio do antigo
partidão. Em recente declaração sobre 1964, rejeitou com uma mão o colaboracionismo pecebista,
fortemente responsável por aquela derrota; e, com a outra, resgatou a política corrigida do PCB após
o golpe. Política que entregou a luta anti-ditatorial à direção da “burguesia democrática” representada
pelo MDB. [“O PCB e o Golpe de 1964 – 1º de abril de 2014].
Uma operação de resgate do espólio envenenado do PCB que lança pela janela o que houve de melhor
naquele partido no pré-1964, expulso pelos prestistas sem direito à discussão, após o golpe, ou seja,
militantes como Apolônio de Carvalho, Carlos Marighela, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves,
Jacob Gorender e centenas de outros, que ousaram defrontar a burguesia, mesmo com propostas
incorretas. Vacilação político-ideológica que levou ao apoio à candidatura burguesa de Dilma Rousseff
no segundo turno, em 2010. Apoio, salvo engano, que espera ainda ser autocriticado. ["Derrotar Serra
nas urnas e depois Dilma nas ruas. PCB – 13 de outubro de 2010.”]
Correio da Cidadania: Mas não seria um avanço uma frente de esquerda, em outubro deste
ano?
Mário Maestri: Seria, sim, fundamental uma candidatura presidencial suprapartidária, apoiada no
PCB, PSOL e PSTU-LIT e extensiva a todos os grupos e organizações que quisessem participar e
aceitassem programa classista e anticapitalista. Frente eleitoral que organizasse núcleos populares
suprapartidários de base apontando para além das eleições. A simples aliança das legendas, para
conseguirem mais alguns deputados, seguida, após o pleito, de “bom dia, até mais ver”, será sentida
pela população como outra sopa de letrinhas.
Em um sentido mais geral, creio que um movimento de reagrupação, centralização e rearmamento
político e ideológico da vanguarda trabalhadora e do povo de esquerda será possível, na medida do que
necessitamos, a partir de uma vitória substantiva setorial dos trabalhadores, no mundo ou no Brasil. O
que não nos desobriga de trabalhar duro – e acender uma velinha, por que não! – para facilitar que isso
ocorra.
Contribui indiscutivelmente para que esse projeto avance e frutifique a conformação de uma jovem,
combativa e relativamente numerosa vanguarda, surgida nas lutas que se têm acelerado nos últimos
tempos. Ela se encontra nos grupos e partidos de esquerda e, em boa parte, fora deles.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é
jornalista.