Entrevista com Leonardo Boff
Aos 75 anos, Leonardo Boff possui a biografia rara de líder religioso, intelectual respeitado e militante
das causas do povo. Em 1959, aos 24 anos, ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos.
Diplomado em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique, na Alemanha, foi um dos pioneiros
na formulação da Teologia da Libertação, que procurava combinar a indignação diante da miséria e da
exclusão na América Latina com a fé cristã. Em 1985, quando o Vaticano encontrava-se sob de ideias
conservadores, Boff foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso" pela Sagrada Congregação para
a Defesa da Fé, sucessora do Santo Ofício, que na saída da Idade Média, organizava os tribunais da
Inquisição.
A reportagem e a entrevista é de Paulo Moreira Leite, jornalista, publicada por Brasil 247, 02-09-2014.
Embora tenha conseguido retomar algumas de suas atividades, auxiliado pelo apoio de uma formidável
pressão, quando foi ameaçado de nova punição, em 1992, Boff decidiu se auto promover ao estado leigo.
No ano seguinte, foi aprovado, por concurso, para a cadeira de Filosofia da Religião, Ética e Ecologia da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Autor de mais de 60 livros sobre Teologia, Antropologia,
Espiritualidade e Mística, entre outros assuntos, até hoje Boff também realiza palestras para estudantes,
para o Movimento Sem-Terra e as comunidades da Igreja.
Eis a entrevista.
O senhor tem contatos com pessoas mais diversas do povo brasileiro. Eu gostaria que contasse
como estes cidadãos estão vendo a eleição de 2014. Há grandes mudanças em relação a 2010,
2006, 2002?
Há um mal estar generalizado no mundo como Freud constatava nos anos 30 do século passado. Todos
têm a sensação de que assim como o mundo está não pode continuar. Tem que haver mudanças. É
o efeito da crise de nossa civilização que não dispõe mais de recursos próprios para dar conta de sua
própria crise interna. Bem diziaEinstein: "o pensamento que criou a crise não pode ser o mesmo que nos
tira dela". Devemos pensar diferente e agir diferente.
No Brasil as manifestações de junho de 2013 no fundo queriam dizer: "não queremos mais um Brasil dos
negócios e das negociatas. Queremos um Brasil de cidadãos que participam". Há ainda um fator novo:
as políticas públicas do PT que tiraram 36 milhões da pobreza foram incorporadas como coisa natural,
um direito do cidadão. Ora, o cidadão não tem apenas fome de pão, de casa, de luz elétrica. Tem outras
fomes: de ensino, de cultura, de transporte minimamente digno, de saúde razoável e de lazer. A falta de
tais coisas suscita uma insatisfação generalizada que faz com que esta eleição de 2014 seja diferente de
todas as anteriores e a mais difícil para o PT. Precisamos de mudança.
Mas dentre os partidos que podem fazer mudanças na linha do povo, apenas vejo o PT, desde que
consolide o que fez e avance e aprofunde as mudanças novas atendendo as demandas da rua. Dilma é
ainda a melhor para o povo brasileiro.
Por que?
Os fatos falam por si. Até hoje nenhum governo fez políticas públicas cuja centralidade era o povo
marginalizado, os invisíveis, considerados óleo gasto e zeros econômicos. Lula e Dilma introduziram
políticas republicanas, vale dizer, que têm as grandes maiorias em seu foco. Importa consolidar
estes avanços: Bolsa Família, Luz para todos, Minha casa minha vida, crédito consignado, mais
escolas técnicas e mais universidades e correção do salário em 70% da inflação diminuindo em 17%
a desigualdade social. Quem fez isso com sucesso deve poder continuar a fazê-lo e de forma mais
profunda e abrangente. Dilma é ainda a melhor opção para esta tarefa messiânica.
O senhor conheceu Marina Silva no Acre, onde ela foi sua aluna. Também tem acompanhado sua
campanha em 2014, como candidata a presidente pelo PSB. O que mudou?
Primeiro ela mudou de religião. De um cristianismo de libertação, ligado aos povos da floresta e aos
pobres, passou para um cristianismo pietista e fundamentalista que tira o vigor do engajamento e se
basta com orações e leituras literalistas da Bíblia. Isso transformou a Marina numa fundamentalista com
a mentalidade de alguns líderes muçulmanos: ler a vontade de Deus não na história e no povo, mas nas
páginas da Bíblia de 3-4 mil anos atrás. Isso enrijece a mente e a torna ingênua face à realidade política.
Agora como candidata pelo PSB representa uma volta ao velho e ao atrasado da política, ligada aos
bancos e ao sistema financeiro. Seu discurso de sustentabilidade se tornou apenas retórico. Ela não
encontrou aquilo que é a essência da verdadeira ecologia: uma nova relação para com a Terra e a
natureza: respeitando seus direitos e organizando um modo de produção que respeita os ritmos naturais.
Para mim é uma espécie de Jânio de saia.
Marina participou da luta popular contra empresários e fazendeiros que tentavam destruir a
Amazônia. Também esteve ao lado de Chico Mendes até seu assassinato, em 1988. Como entender
que, hoje, ela possa dizer que Chico Mendes fez parte da mesma elite a que pertence, por exemplo,
uma das herdeiras do maior banco privado do país?
Esta visão de Marina mostra o quanto é fraca teoricamente e revela a contaminação que já sofreu
de seus aliados e conselheiros, todos neoliberais e submissos à lógica do mercado que não é nada
cooperativo, mas estritamente competitivo. Ela não está construindo no canteiro do povo, dos pobres e
marginalizados, mas levando tijolo, cimento e água para o canteiro das elites opulentas e conservadoras
de nosso país.
De que forma essa visão dogmática, fundamentalista, da religião, pode afetar a postura de
uma pessoa que pretende governar um país onde uma sociedade complexa e plural, como a
brasileira?
As consequências são ruins. Ela viverá permanentemente em crise de consciência entre a lógica da
realidade e a lógica religiosa, fundada numa leitura velhista, errônea e anti-histórica da Bíblia. A Bíblia não
é um fetiche de soluções, mas uma fonte de inspiração para que nós achemos as soluções adequadas
para o tempo presente. Um fundamentalista não serve para governar, pois cria continuamente conflitos.
O governante deve ser alguém de síntese, que saiba dos conflitos e das diferentes posições e tenha a
habilidade de conduzir para uma certa convergência no ganha-ganha. Marina não possui esta habilidade.
Se vencer, oxalá não tenha o mesmo destino político que teveCollor de Mello.
No último debate presidencial, Marina recusou-se a revelar quem paga palestras que lhe rendem
mais de R$ 50 000 por mês. Disse que era uma exigência dos clientes. Como analisar isso?
Acho que como cidadã e militante da causa ecológica ela pode e deve aceitar palestras sobre temas de
ecologia, pois o analfabetismo ecológico é grande, especialmente, entre os empresários. Achei que a
pergunta a ela não foi pertinente, porque invade a esfera do privado de forma indevida. Outra coisa seria
se ela como candidata cobrasse por suas falas. Aí poderia surgir um compromisso tácito entre a empresa
que a convidou, criando um problema político, pois a empresa pode se valer deste fato para conseguir
vantagens ilegítimas.
No Brasil de hoje, o desemprego está baixo. Os salários crescem mais do que a inflação. Mesmo
assim, há um grande pessimismo. Por que?
Grande parte do pessimismo é induzido por aqueles que querem a todo custo e por todos os
meios tirar o PT do poder. Aqui se trata de uma luta de classe selvagem. Nossas elites que Darcy
Riberiro considerava as mais reacionárias do mundo e Antônio Ermirio de Morais dizia com
frequência: "as elites só pensam nelas mesmas" junto com a grande mídia promoveram esse pessimismo.
Mas o povo lá em baixo sabe que sua vida melhorou tem esperança de melhorar ainda mais. Vê no PT a
comprovação de que pode realizar esse sonho viável. No fundo as elites de distintas ordens pensam:
aquele lugar lá no Planalto é nosso e não de um trabalhador. Lula pode estar no Planalto mas como
serviçal e faxineiro. Ocorre que se realizou a maior revolução pacífica e democrática de nossa história:
um outro sujeito de poder, alguém, sobrevivente da grande tribulação, chegou lá e deu outra direção ao
país rumo ao povo e sua inclusão social: Luiz Inácio Lula da Silva, continuado pela Dilma Rousseff.
Uma explicação comum para as dificuldades de Aécio Neves é o fracasso histórico do PSDB em
oferecer uma perspectiva de melhoria para a maioria da população. Por essa razão, seu candidato
parece caminhar para a quarta derrota em quatro eleições presidenciais. O senhor concorda?
O PSDB não possui base popular nem está ligado organicamente aos movimentos sociais. Ele nasceu
com a mentalidade da socialdemocracia européia, feita em grande parte pela classe média. Aqui o
problema é como resolver os problemas atávicos do povo, de sua fome, de sua falta de escolas, de saúde
e moradia. O PSDB não colocou isso no centro de sua agenda, mas o desenvolvimento econômico,
alinhando-se ao curso da macroeconomia capitalista, especulativa e feroz. Por isso há uma afinidade
natural entre este partido e os que "estão bem na sociedade". Ocorre que o desafio é atender aqueles
que "estão mal". Isso eles fizeram muito pouco. Nem sabe fazê-lo, pois se exige uma pedagogia tipo
Paulo Freire na qual o pobre entra como sujeito da superação de sua pobreza.
Como o senhor avalia o papel da mídia em 2014?
Eu creio que a grande mídia seja de jornais, rádios ou televisão mostrou seu caráter nitidamente de
classe. Muitos desses meios foram concedidos (esquecemos que não são donos, mas concessionados)
a algumas famílias opulentas. Usam seu poder para fazer a cabeça do brasileiro. A TV Globo faz mais a
cabeça dos brasileiros na linha do sistema vigente capitalista e consumista mais que todas as escolas e
universidades juntas. Isso é anti-democrático e no nível de outros países mais civilizados, uma vergonha.
Com que direito a família Marinho pode assumir esta pretensão? Na verdade, hoje, com a oposição
fraca, eles se constituíram a grande oposição ao governo do PT. Erro do PT foi não ter construído uma
mídia alternativa para tensionar as opiniões e oferecer uma alternativa ao povo na leitura da realidade. A
mais manipuladora e até mentirosa revista de opinião deste país é sem dúvida a revista VEJA.
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