segunda-feira, 24 de março de 2014

IGREJA CATÓLICA E O GOLPE DE 1964

IGREJA CATÓLICA E O GOLPE DE 1964


Artigo de Frei Betto

Sabemos que o povo latino-americano é profundamente religioso.

Pergunte a um pequeno agricultor qual a sua visão de mundo e, com certeza,

receberá uma resposta de caráter religioso.

Sabemos todos? Quase todos. Exceto certa parcela da esquerda latinoamericana

que, influenciada pelo positivismo marxista europeu, se esqueceu de

aplicar o método dialético ao fator religioso e, na contramão de Marx e Engels
(vide O Cristianismo Primitivo, de Engels) considerou tudo o que cheira a água


benta e incenso pura alienação a ser duramente combatida. E o pior: incluíram

nos estatutos de seus partidos a exigência de o novo militante declarar-se

formalmente ateu... Ou seja, primeiro, ateu; depois, revolucionário.

Já a direita, mais inteligente em sua esperteza, sempre soube explorar o

fator religioso em seu proveito. Assim, para evitar que Jango implementasse no

Brasil reformas de base (estruturais) evocou a proteção anticomunista de Nossa

Senhora Aparecida e importou dos EUA o padre Peyton que promoveu aqui, nas

principais capitais, Marchas da Família com Deus pela Liberdade.

Veio o golpe militar, a 1º de abril de 1964, e não era mentira... Jango foi

deposto e a sanha repressiva se disseminou pelo Brasil.

Como membro da direção nacional da Ação Católica, participei no Rio,

no Convento do Cenáculo, na rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, da reunião

da CNBB na qual os bispos católicos definiram sua posição frente à quartelada.

Houve acalorada discussão entre progressistas e conservadores. De um lado,

Dom Helder Camara, bispo auxiliar do Rio, apoiado por Dom Carlos Carmelo

Mota, arcebispo de São Paulo e presidente da CNBB, criticaram os militares

por desrespeito à Constituição e à ordem democrática. De outro, Dom Vicente

Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e Dom Geraldo Sigaud, arcebispo de
Diamantina (MG), exigiam Te Deum por ter a Virgem de Aparecida escutado os


clamores do povo e livrado o Brasil da ameaça comunista. Venceu esta segunda

posição. A CNBB deu seu apoio oficial aos militares golpistas.

Porém, não há mal que sempre dure. Àquela altura, um amplo setor

da Igreja Católica já estava comprometido com a resistência à ditadura. Esta

não soube perceber a diferença entre católicos progressistas e conservadores.

Cometeu o equívoco de considerar a Igreja uma instituição monolítica, de poder

centralizado, unívoco, que tacitamente acendia uma vela a Deus e outra ao

diabo...

O germe do progressismo católico no Brasil havia sido semeado pela Ação

Católica, influenciada pela Ação Católica francesa que, na Segunda Guerra,

participou da resistência ao nazismo em aliança com os comunistas. Aqui, a JEC

(Juventude Estudantil Católica) e a JUC (Juventude Universitária Católica) se

destacavam na luta por justiça no movimento estudantil. Desses movimentos

nasceu a Ação Popular, na qual os militantes católicos de esquerda atuavam

sem prestar contas aos bispos nem comprometer a instituição eclesiástica.

Na primeira semana de junho de 1964, dois meses após o golpe, o

CENIMAR, serviço secreto da Marinha, promoveu no Rio o arrastão destinado

a prender militantes da Ação Popular. Para ele não havia diferença entre Ação

Católica e Ação Popular. O apartamento da direção nacional da Ação Católica,

da JUC e da JEC, vizinho do Convento do Cenáculo, foi invadido na madruga de

5 para 6 de junho de 1964. Fomos todos presos.

Em outras regiões do país, leigos, religiosos(as) e padres foram

perseguidos, presos e/ou convocados a depor em IPMs (Inquérito Policial

Militar).

Logo a repressão percebeu que nem toda a Igreja apoiava o golpe. Havia

até mesmo bispos e cardeais críticos à ditadura e dispostos a defender os

direitos humanos. Muitos se engajaram em ações de resistência, seja proferindo

sermões tidos como “subversivos”, seja escondendo perseguidos políticos.

A partir da prisão dos frades dominicanos aliados à Ação Libertadora

Nacional comandada por Carlos Marighela, em novembro de 1969 (vide meu
livro e filme de mesmo título, dirigido por Helvécio Ratton, Batismo de Sangue),


aprofundou-se o conflito entre Estado e Igreja Católica. A CNBB, já então

hegemonizada por bispos progressistas, emitiu documentos em defesa dos

direitos humanos e da democracia, e o papa Paulo VI respaldou os religiosos

encarcerados.

Em São Paulo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns criou, a partir de

1970, uma vasta articulação de resistência e crítica à ditadura, e defesa
dos direitos humanos: Comissão Justiça e Paz, equipe Clamor, jornal O São

Paulo, culminando na publicação do mais consistente documento antiditadura

produzido até hoje, o livro Brasil Nunca Mais, no qual os crimes da ditadura são


divulgados com base, não em notícias de jornais, e sim em documentos oficiais

elaborados pelas Forças Armadas.
Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura

militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto

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