sábado, 25 de janeiro de 2014

Frei Betto: Lula e Dilma foram "governo social-popular desenvolvimentista"

Frei Betto: Lula e Dilma foram "governo social-popular desenvolvimentista"

Jornal Brasil de Fato

"O governo do PT só pode ser considerado de 'esquerda' se comparado ao reacionarismo das forças políticas que lhe fazem oposição"
20/01/2014
Por Carlos Miguélez Monroy
Do HemisferioZero
Publicada no IHU
“Helvecio, a vida supera a ficção”, dizia a dedicatória que Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, escreveu ao diretor de cinema Helvecio Ratton, quando lhe deu um exemplar do livro Batismo de sangue. O diretor aceitou o desafio e em 2006 as salas dos cinemas exibiram pela primeira vez esta arrepiante história da repressão feita pela ditadura militar no Brasil. Os corpos torturados nesta história pertencem a frades dominicanos que, como Frei Betto, lutaram contra a ditadura.
Publicou mais de 50 obras sobre diferentes temas, embora se note sua obsessão pela justiça social e pelos direitos humanos. Para Frei Betto, ser de esquerda significa “optar pelos pobres, indignar-se perante a exclusão social, inconformar-se com todas as formas de injustiça ou, como dizia Bobbio, considerar a desigualdade social uma aberração. Ser de direita é tolerar injustiças, pôr os imperativos do mercado por cima dos direitos humanos, encarar a pobreza como falta incurável, acreditar que existem pessoas e povos superiores aos outros”.
Trabalhou no programa Fome Zero do governo de Luis Inácio Lula da Silva, como explica nesta entrevista, até este ser suprimido para a criação do Bolsa Família, um programa de subsídio direto às famílias.
A entrevista é de Carlos Miguélez Monroy, jornalista espanhol e mexicano, e publicada por HemisferioZero, 13-01-2014.  A tradução portuguesa é publicada no blog do jornalista.
Eis a entrevista.
O senhor disse num artigo que é hora de as autoridades brasileiras “deixarem a torre de marfim, largarem os binóculos centrados nas eleições de 2014 e pisarem na realidade…” Por que acha que os políticos estão nessa torre que mencionou?
Porque eles continuam sem dar atenção aos problemas mais graves do país: saúde, educação, saneamento e transporte público. Além disso, o Brasil necessita urgente de uma reforma política. É preciso proibir o financiamento de campanhas eleitorais por empresas e bancos, e extirpar do nosso sistema político resquícios da ditadura militar (1964-1985), como o fato de um estado com 1 milhão de habitantes ter o mesmo número de senadores, 3, que um outro com 40 milhões de habitantes.
A população se rebela contra um governo “de esquerda”. Todo mundo trai suas ideias com o poder?
O governo do PT só pode ser considerado de “esquerda” se comparado ao reacionarismo das forças políticas que lhe fazem oposição. De fato, trata-se de um governo social-popular desenvolvimentista, mãe dos pobres e pai dos ricos.
Nem todos traem suas ideias progressistas ao chegar ao poder. Exemplo disso são Mandela, Evo Morales, Chávez, Fidel, Rafael Correa, Allende e tantos outros. Mas, no Brasil, o PT trocou um projeto de país por um projeto de poder. Manter-se no poder, ainda que com alianças espúrias e concessões contrárias aos próprios princípios originários do PT, passou a ser mais importante do que implementar uma política de transformação de nossas estruturas sociais. Em 10 anos de governo, o PT não promoveu nenhuma reforma estrutural, em especial a mais importante e prometida em seus documentos fundadores – a reforma agrária.
Sua visão do Brasil é tão diferente do discurso oficial e do discurso de muitos brasileiros otimistas pela macroeconomia, pelo desenvolvimento do país e pela luta contra a pobreza…
Minha visão é diferente porque encaro a realidade pela ótica dos oprimidos, e não dos opressores. De fato, o Brasil conheceu grandes avanços em 10 anos de governo do PT: o desemprego praticamente inexiste; houve redução da miséria, da qual 40 milhões de pessoas foram salvas; expansão do crédito; acesso mais fácil aos produtos de primeira necessidade; importação de médicos estrangeiros para áreas populares; valorização do salário mínimo e controle da inflação. Tudo isso trouxe evidentes melhoras à vida do povo brasileiro.
Porém, segundo o IPEA, órgão do governo federal, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é de 175 vezes! (dado de novembro 2013). Ainda há 16 milhões de pessoas na miséria. Os serviços de saúde e o sistema público de educação estão sucateados, são de baixa qualidade. O transporte público é ineficiente. O governo continua injetando demasiado dinheiro no mercado financeiro, favorecendo a ciranda especulativa. O agronegócio desmata a Amazônia e as mineradores poluem os rios sem que o governo tome medidas eficazes de proteção ambiental e às populações indígenas (há cerca de 800 mil indígenas no Brasil).
Na sua opinião, quais seriam as razões de fundo para os problemas graves que assinalava antes?
A falta de um modelo alternativo ao neoliberalismo e ao modelo capitalista desenvolvimentista-consumista. Por outro lado, o governo é refém das classes dominantes e, embora seja resultado dos movimentos sociais, tem pouco diálogo com suas lideranças.
O senhor trabalhou no programa Fome Zero do governo de Lula. Como avalia esse programa e seu trabalho ali? Por que o deixou?
Deixei porque o Fome Zero tinha caráter emancipatório e o governo decidiu erradicá-lo para implantar o Bolsa Família, que tem caráter compensatório. Família que ingressava no Fome Zero estaria em condições de gerar a própria renda em dois ou três anos. As famílias do Bolsa Família perpetuam sua dependência ao governo federal, sem porta de saída. Por outro lado, o Fome Zero era administrado pelos Comitês Gestores, integrados por lideranças populares do município beneficiado. O Bolsa Família é administrado pelos prefeitos, que o transformam em moeda eleitoral…Tudo isso descrevo em meu livro “Calendário do Poder” (editora Rocco).
O senhor acha que a realização da Copa do Mundo ajudará o desenvolvimento do Brasil? Acha compatível o dispêndio de milhões de reais com a melhora da vida das pessoas? Os despejos são efeitos colaterais necessários para esse desenvolvimento, como dizem algumas pessoas?
Nunca imaginei que o governo brasileiro se tornasse tão subserviente aos interesses pecuniários da Fifa. Os estádios para a Copa estão sendo construídos precariamente (vide os constantes desabamentos e mortes de operários); as obras são superfaturadas (previstas inicialmente em 22 bilhões de reais, já atingem o valor de 30 bilhões de reais); a lei seca nos estádios foi revogada por pressão das cervejarias aliadas à Fifa; os ingressos são muito caros e, devido à crise financeira na Europa, o número de torcedores estrangeiros na Copa deve ser muito menor do que o previsto. Assim, não duvido que ocorram manifestações populares durante a Copa, como aconteceu durante a Copa das Confederações, em junho de 2013.
Como o senhor avalia a maneira que os meios de comunicação falam sobre o Brasil?
Os grandes meios miram o Brasil com preconceito, como se os índices da Bolsa de Valores e do PIB traduzissem a nossa realidade. E julgam que somos apenas o país do futebol, do carnaval e das mulatas. Mas isso é culpa do nosso governo, que não incentiva o turismo ecológico, cultural e científico. Mesmo o brasileiro rico prefere levar os filhos à Disneylândia do que à Amazônia… Nossas favelas são pintadas e não saneadas.
Existem propostas de reduzir a idade penal dos criminosos no Brasil. O senhor acha que é uma medida efetiva para reduzir a criminalidade? Em sua opinião, que outras medidas ajudariam a reduzir a criminalidade nas ruas do Brasil?
Em nenhum país do mundo – vide os EUA – a redução da maioridade penal ou pena de morte significou redução da criminalidade. Esta se reduz com educação básica de qualidade, creches para crianças de 0 a 6 anos, tempo integral na escola etc.
O senhor encontra diferenças entre a política de Lula e a de Dilma Rousseff?
Lula dialogava mais com os movimentos sociais e promoveu mais assentamentos e desapropriações de terras para efeito de reforma agrária do que Dilma. Mas na política econômica não há diferenças.
Que razões o senhor tem para ser otimista quanto ao futuro do Brasil?
Tenho um princípio: Guardar o pessimismo para dias melhores… Acredito na capacidade de mobilização do povo brasileiro, sobretudo dos mais jovens, e espero que nas eleições de 2014 possamos mudar o perfil conservador do Congresso Nacional e reeleger Dilma presidente, pois é melhor ela do que qualquer outro candidato com possibilidade. E sei que, se o papa é argentino, Deus é brasileiro!

O STF vai abrir o mais bem guardado segredo de Joaquim Barbosa

O STF vai abrir o mais bem guardado segredo de Joaquim Barbosa
qui, 23/01/2014 - 12:26 - Atualizado em 24/01/2014 - 12:53
Entre hoje e amanhã, o presidente interino do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski tornará publico o Inquérito 2474, o chamado “gavetão”, o mais bem guardado segredo do Ministro Joaquim Barbosa.
O “gavetão” é a peça originária do Inquérito 2245, que resultou no “mensalão”. Na ocasião, o relator Joaquim Barbosa cindiu o inquérito 2245 e as partes não aproveitadas se transformaram no inquérito 2474, aberto em março de 2007, que ele manteve sob segredo de Justiça.
Apesar de garantir que não haveria mais “gavetas” no STF, Joaquim Barbosa recusou-se a divulgar o conteúdo do inquérito.
Em 2011 deferiu pedido formulado pela defesa de Daniel Dantas, abrindo apenas a ele o inquérito (http://tinyurl.com/kgnobew). Mas negou a dois condenados do “mensalão” alegando que não teria nenhuma relação com a AP 470. No entanto, soube-se que laudos da Polícia Federal, que atestariam a participação de Daniel Dantas no financiamento de Marcos Valério, foram encaminhados para o Inquérito 2474, e não para o 2245. Assim como laudos que atestavam a aplicação dos recursos da Visanet em campanhas promocionais.
Ao dar publicidade ao Inquérito, Lewandowski permitirá que não apenas Dantas, mas todos os interessados possam conhecer seu conteúdo.

AS DÚVIDAS SOBRE A 2474

Há suspeita de que, ao excluir as contribuições de Dantas, atestadas por laudos da Polícia Federal,  a PGR teria encontrado dificuldades em justificar o montante movimentado por Valério. Daí a razão de ter tratado como desvio os R$ 73 milhões da Visanet, ignorando laudos técnicos que atestavam a aplicação dos recursos em campanhas.
O PGR Antônio Fernando de Souzase fixou em um parágrafo do relatório de auditoria inicial do Banco do Brasil:
“A inexistência, no âmbito do Banco do Brasil, de formalização de instrumento, ajuste ou equivalente para disciplinar as destinações dadas aos recursos adiantados às agências de publicidade dificulta a obtenção de convicção de que tais recursos tenham sido utilizados exclusivamente na execução de ações de incentivo ao abrigo do Fundo”.
O relatório não  nega a aplicação  dos recursos. Apenas – dada a fragilidade dos relatórios – informava não  ser possível assegurar que “foram utilizados exclusivamente nas ações  de incentivo ao abrigo do fundo”.
O PGR Souza ignorou o “exclusivamente” e entendeu que o relatório atestava que a totalidade das verbas publicitárias da Visanet haviam sido desviadas. Posteriormente, aposentou-se e passou a trabalhar em um escritório de advocacia agraciado com um contrato gigante com a Brasil Telecom.
A divulgação do 2474 poderá ser de boa valia para Barbosa esvaziar boatos de que seu filho teria sido contratado por uma das empresas beneficiadas com recursos da Visanet, e cujo caso foi transferido para o “gavetão”. Ou de que o Banco Rural teria feito com a TV Globo operações semelhantes às que fechou com o PT.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Luiz Eduardo Soares: “A sociedade terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial”

Luiz Eduardo Soares: “A sociedade terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial”

Jornal Brasil de Fato

Divulgação
Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro
21/01/2014

Viviane Tavares,
da EPSJV/Fiocruz

A desmilitarização da polícia, uma das bandeiras das jornadas de junho, sempre foi uma das principais de Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e antropólogo.
Nesta entrevista, o autor de mais de 20 livros, entre eles Tudo ou Nada, Elite da Tropa e Cabeça de Porco, explica o motivo de sua defesa, e aponta que este é apenas o primeiro passo para o caminho árduo de construção de uma sociedade “efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos”. Luiz Eduardo foi um dos principais elaboradores da PEC-51 – recentemente apresentada pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ) – que visa, segundo ele, reformar o modelo policial.
Nós temos uma polícia e um corpo de bombeiros que são militar. Você há muito tempo defende a desmilitarização. Por quê?
Luiz Eduardo Soares – Considero a desmilitarização das polícias indispensável e a dos bombeiros absolutamente conveniente, ainda que essa mudança não seja suficiente. Mesmo porque nossas polícias civis não têm menos problemas do que as militares. Em primeiro lugar,
é preciso saber o que significa, para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa obrigá-la a copiar a organização do Exército, do qual ela é considerada força reserva. O melhor  formato organizacional é aquele que melhor permite à instituição cumprir suas finalidades.
Finalidades diferentes requerem estruturas organizacionais distintas. Portanto, só faria sentido reproduzir na polícia o formato do Exército se as finalidades de ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o que diz a Constituição. O objetivo do Exército é defender o território e a soberania nacionais. Para cumprir essa função, tem de organizar-se para realizar o pronto emprego, ou seja, mobilizar grandes contingentes humanos e materiais com máxima celeridade e rigorosa observância das ordens proferidas pelo comando. Precisa preparar-se para, no limite, fazer a guerra. Pronto emprego exige centralização decisória, hierarquia rígida e estrutura fortemente verticalizada. Nada disso se aplica à Polícia Militar. Seu papel é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força. Segurança é um bem público que deve ser provido universalmente e com equidade pelos profissionais incumbidos de prestar esse serviço à cidadania. Os confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança poderia haver com o Exército, ainda que mesmo nesses casos as diferenças sejam marcantes. Mas eles correspondem a menos de 1% das atividades que envolvem as PMs. A imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva são melhor resolvidos com a adoção de estratégias incompatíveis com a estrutura organizacional militar. Refiro-me ao policiamento comunitário, os nomes variam conforme o país.
E em que sentido o policiamento comunitário distingue-se das ações militares?
Essa metodologia é inteiramente distinta do “pronto emprego” e implica o seguinte: o ou a policial na rua não se limita a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento ditado pelo estado maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele ou ela é a profissional responsável por agir como gestora local da segurança pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e altamente qualificada: diagnosticar os problemas e identificar as prioridades, em diálogo com a comunidade, mas sem reproduzir seus preconceitos; planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do poder público, na perspectiva de prevenir e contando com o auxílio da comunidade, o que se obtém respeitando-a. Para que haja esse tipo de atuação, é imprescindível valorizar quem atua na ponta, dotando essa pessoa dos meios de comunicação para convocar apoio e de autoridade para decidir. Há sempre supervisão e interconexão, mas é preciso que haja, sobretudo, autonomia para a criatividade e a adaptação plástica a circunstâncias que tendem a ser específicas aos locais e aos momentos. Qualquer profissional que atua na ponta, sensível à complexidade da segurança pública, ao caráter multidimensional dos problemas e das soluções, ou seja, qualquer policial que atue como gestor ou gestora local da segurança pública, deve dialogar, evitar a judicialização sempre que possível, mediar conflitos, orientar-se pela prevenção e buscar acima de tudo garantir os direitos dos cidadãos. Dependendo do tipo de problema, mais importante do que uma prisão e uma abordagem posterior ao evento problemático, pode ser muito mais efetivo iluminar e limpar uma praça, e estimular sua ocupação pela comunidade e pelo poder público, via secretarias de cultura e esportes. Os exemplos são inúmeros e cotidianos. Esse é o espírito do trabalho preventivo a serviço dos cidadãos, garantindo direitos. Esse é o método que já se provou superior. Mas tudo isso requer uma organização horizontal, descentralizada e flexível. Justamente o inverso da estrutura militar. ‘E o controle interno?’, alguém arguiria.
Engana-se quem supõe que a adoção de um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional seja necessária. Se isso funcionasse, nossas polícias seriam campeãs mundiais de honestidade e respeito aos direitos humanos. Eficazes são o sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de sentir-se valorizado pela sociedade. Além de tudo, corporações militares tendem a ensejar culturas belicistas, cujo eixo é a ideia de que a luta se dá contra o inimigo. Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro. Uma polícia ostensiva preventiva para a democracia tem de cultuar a ideia de serviço público com vocação igualitária e radicalmente avessa ao racismo.
A militarização da polícia justifica o seu comportamento? Uma vez desmilitarizada, qual seria o passo seguinte, uma vez que a corporação será a mesma?
Como disse, respondendo à primeira pergunta, desmilitarizar é apenas uma das mudanças indispensáveis. Isolada, cada uma delas será insuficiente. E não nos iludamos: toda reforma institucional da segurança pública será somente um passo numa caminhada mais longa e difícil, rumo à construção de uma sociedade efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos, na qual a justiça mereça o nome que tem. A sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial, aplaudindo execuções, elegendo políticos que defendem o direito penal máximo e governos que acionam a violência do Estado. As transformações, um dia, terão de incluir a legalização das drogas, que considero uma mudança fundamental. No momento, contudo, o que está em questão, e com máxima urgência, é salvar jovens negros e pobres do genocídio, é acabar com as execuções extra-judiciais, as torturas, a criminalização dos pobres e negros, é reduzir o número inacreditável de crimes letais intencionais, é suspender o processo de encarceramento voraz, que atinge exclusivamente as camadas sociais prejudicadas pelas desigualdades brasileiras, é sustar a aplicação seletiva das leis, que vem se dando em benefício das classes sociais superiores, dos brancos, dos moradores dos bairros afluentes de nossas cidades. Portanto, nada de idealizações ao avaliar as reformas propostas. O que não significa que cada passo não seja de grande relevância e mereça todo empenho de quem se sensibiliza com a tragédia nacional, nessa área, tão decisiva e negligenciada.
Historicamente, tivemos momentos em que a luta pela desmilitarização da polícia aparece, como na promulgação da Constituição de 1988. Por que ela não aconteceu?
Não houve comprometimento suficiente das forças mais democráticas, a sociedade não se mobilizou, os lobbies corporativistas das camadas superiores das polícias se mobilizaram, as forças conservadoras se uniram e funcionou a chantagem dos antigos líderes da ditadura, em declínio, mas ainda ativos. Nas jornadas de junho de 2013, e em seus desdobramentos, a brutalidade policial, que era e continua a ser cotidiana nos territórios populares, chegou à classe média e chocou segmentos da sociedade que antes ignoravam essa realidade ou lhe eram indiferentes. A esperança reside na continuidade dos movimentos sociais, que adquiriram novo ímpeto, e em sua capacidade de pautar esse debate e incluí-lo na agenda política. Não vai ser fácil. Mas tampouco será impossível. Abriu-se para nós, pela primeira vez, uma temporada de frestas.
Existem diversos projetos em tramitação para a desmilitarização da polícia: um proposto pelo senador Blairo Maggi, outro do ex-deputado Celso Russomanno, e o mais recente proposto pelo senador Lindbergh Farias, sob sua consultoria, a chamada PEC-51. No que eles se diferenciam?
Há mais de 170 projetos no Congresso Nacional propondo a reforma do artigo 144 da Constituição. Vários incluem a desmilitarização. Nenhuma proposta de emenda constitucional é tão ousada e completa quanto a PEC-51. Nenhuma incorporou 25 anos de militância, experiência, debate e pesquisas, ouvindo profissionais das polícias e da universidade, operadores da justiça e protagonistas dos movimentos sociais, e buscando o denominador comum. Isso não significa unanimidade. Há interesses contrariados e haverá resistências corporativistas, assim como posições ideológicas em oposição. Entretanto, o envolvimento de muitos movimentos, inclusive de policiais, já indica seu potencial para construir um consenso mínimo e sensibilizar a sociedade. 70% dos profissionais da segurança querem a mudança, como pesquisa de que participei demonstrou, em 2010. Não necessariamente querem a mesma mudança, mas o reconhecimento da falência do modelo atual é, em si mesmo, significativo.
Você ajudou a formular a PEC –51. Como foi isso e quais são as expectativas?
A PEC-51 visa reformar não apenas as PMs, desmilitarizando-as, mas o próprio modelo policial, atualmente baseado na divisão do ciclo do trabalho policial: uma polícia investiga, outra faz o trabalho ostensivo preventivo. Pretende também instituir carreira única em cada polícia e transferir aos estados o poder de escolher o modelo que melhor atenda suas peculiaridades, desde que as diretrizes gerais sejam respeitadas. Hoje, em cada estado, as duas polícias, civis e militares, na verdade são quatro instituições ou universos sociais e profissionais distintos, porque há a polícia militar dos oficiais e dos não oficiais (as praças), a polícia civil dos delegados e dos não-delegados como, por exemplo, os agentes, detetives, inspetores, escrivães etc. A PEC propõe que o ciclo de trabalho policial seja respeitado e cumprido em sua integralidade, por toda instituição policial. Ou seja, toda polícia deve investigar e prevenir.
Propõe também a carreira única no interior de cada instituição policial. E propõe que toda polícia seja civil. A transição para o novo modelo, caracterizado pelo ciclo completo, a carreira única e a desmilitarização, uma vez aprovada a PEC, dar-se ia ao longo de muitos anos, respeitando-se todo direito adquirido de todos os trabalhadores policiais, inclusive, é claro, dos que hoje são militares. O processo seria conduzido pelos estados, que criariam suas novas polícias de acordo com suas necessidades. A realidade do Acre é diferente da de São Paulo, por exemplo. A transição seria negociada e levada a cabo com transparência e acompanhamento da sociedade. As polícias seriam formadas pelo critério territorial ou de tipo criminal, ou por combinações de ambos. Um exemplo poderia ser o seguinte: o estado poderia criar polícias sempre de ciclo completo, carreira única e civis – municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo, previstos na Lei nº 9.099; uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra, por exemplo, os homicídios. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos.
(Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio )
 

Movimento negro “endurece” para evitar apartheid nos shoppings

Movimento negro “endurece” para evitar apartheid nos shoppings

Jornal Brasil de Fato
Denominado “Rolé contra o Racismo”, ato político convocado pela UNEafro-Brasil reuniu cerca de 400 pessoas na entrada do shopping JK Iguatemi. O centro comercial, considerado de luxo, fechou as portas e suspendeu o funcionamento, às 14 horas.
(4’52” / 1.11 Mb) - Era para ser mais um dia normal de trabalho para Gilson Mesquita Nunes, de 24 anos. Mas a tarde de 11 de janeiro de 2014 vai ficar marcada como um dia de constrangimento e preconceito. Morador do Jardim Miriam, periferia da zona sul de São Paulo, Gilson é funcionário em um restaurante no Shopping JK Iguatemi, na Vila Olímpia. “Eu sofri ato de racismo aqui dentro. Eu sofri abuso, sofri dano nos direitos morais aqui porque queira ou não ele me expôs na frente da burguesia inteira por completo”, desabafa.
Ao ser barrado pelo segurança no próprio local de trabalho, Gilson teria sido caracterizado como participante de um dos grupos de jovens que organizam os chamados “rolezinhos”. O shopping JK Iguatemi, na Zona Sul de São Paulo, foi um dos seis estabelecimentos que conseguiram liminar na justiça paulista para impedir o encontro de jovens para esse tipo de evento. Foi estabelecida uma multa de R$ 10 mil para quem descumprisse a decisão.
Essa postura foi um estopim que levou o movimento negro a organizar uma mobilização para derrubar aquilo que é considerado um “apartheid”, na medida em que tenta selecionar quem pode ou não frequentar determinados  espaços. O apartheid estabelecia direitos diferenciados para negros e brancos e vigorou entre 1948 e 1993 na África do Sul.
“Rolé contra o Racismo”
Denominado “Rolé contra o Racismo”, o ato político convocado pela União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora (UNEafro-Brasil) reuniu cerca de 400 pessoas na entrada do shopping JK Iguatemi. O centro comercial, considerado de luxo, fechou as portas e suspendeu o funcionamento, às 14 horas.
Para Douglas Belchior, integrante da Uneafro, isso só serviu para demonstrar a “postura racista muito comum” nesse tipo de estabelecimento. Ele acredita que a liminar concedida ao shopping endossa a prática de outros tipos de violência.
“A polícia seleciona quem ela bate, quem ela prende, quem ela mata. A universidade seleciona quem pode entrar e quem não pode. E agora o shopping faz a mesma coisa com o mesmo grupo social, étnico e cultural. Então isso configura, sem dúvida nenhuma, e sem máscara, que o Brasil é um país racista, preconceituoso e discriminatório.”
Curtindo a vida
Fenômeno recente, o rolezinho é um movimento que reúne jovens da periferia. Além da pouca idade, eles têm em comum o gosto por marcas globais de roupas, tênis, acessórios e até mesmo bebidas alcoólicas. São, na maioria, adolescentes de 15 a 18 anos que descobriram uma forma de tornar real as amizades estabelecidas por meio das redes sociais na internet, marcando encontros nos shoppings.
Um dos articuladores dos encontros, Vinícius Andrade, jovem de 17 anos, declara que os passeios nos shoppings reúnem “um grupo de jovens querendo sorrir”.
“Então, o pessoal está tendo uma visão muito ruim para o rolezinho. Quando vê o rolezinho, o pessoal está com a visão de ‘Ah, são favelados querendo bagunçar no shopping, fazer arrastão’. Só que não é isso. Eu queria mostrar para eles um outro ponto de vista do rolezinho. É o ponto de nós irmos lá, curtir, tirar foto, falar com o pessoal.”
Criminalização
A onda dos chamados “rolezinhos” ganhou destaque, em especial, no dia 7 de dezembro de 2013, quando um encontro no Shopping Metrô Itaquera, zona leste de São Paulo, reuniu cerca de 6 mil jovens. A situação causou desconforto nos usuários e temor por parte da direção do centro comercial. A polícia foi acionada e o shopping fechou duas horas mais cedo.
No dia 11 de janeiro, no mesmo shopping, um policial militar foi flagrado agredindo com um cassetete jovens que participavam do rolezinho. Na ação, os PM’s usaram ainda balas de borracha e gás lacrimogêneo.
Os rolezinhos organizados por jovens nos shoppings ocorrem no embalo do funk. Assim como ocorreu com o samba no passado e com o rap mais recentemente, o ritmo musical sofre um processo de criminalização.
A historiadora Sara Santos mora na zona leste da capital paulista, onde o funk é bastante popular. Ela ressalta a importância de o movimento negro se posicionar em defesa dos “funkeiros” e denunciar a repressão sofrida por eles.
“O funk hoje é o ritmo que está ligado diretamente às periferias, que é onde se concentra a maioria dos jovens negros. Quando você criminaliza um ritmo da periferia automaticamente você acaba atingindo jovens que são pobres periféricos, principalmente, negros a maioria.”
De São Paulo, da Radioagência NP, Leonardo Ferreira.
21/01/14
Foto: Reprodução

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

“Na prisão, tudo é mediado pela violência”

“Na prisão, tudo é mediado pela violência”

 

Rafael Stedile
Ex-detento, professor da USP afirma que sistema carcerário está abandonado e vive inversão de valores 
17/01/2014
Mariana Desidério
De São Paulo
As prisões brasileiras são dominadas pela lógica da violência e por valores como o machismo e a lei do mais forte. É o que diz Roberto da Silva, especialista em educação e sistema prisional.
 
Professor da Faculdade de Educação da USP, Silva fez do mestrado à livre-docência nessa universidade. O tema de suas pesquisas tem tudo a ver com sua trajetória de vida. Ele foi interno da antiga Febem e já esteve na prisão, condenado por crimes diversos.
 
Nesta entrevista ao Brasil de Fato SP, o professor fala sobre o abandono do sistema prisional brasileiro (o último exemplo são os casos de barbárie no Maranhão) e a política de encarceramento em massa que vigora no país atualmente. Para ele, não educação que vai salvar o sistema prisional. Educação não faz milagres, afirma. Leia a entrevista:
 
Temos visto situações extremas no Maranhão, como a decapitação de presos. O que isso revela sobre o sistema prisional brasileiro?
 
Esses motins e rebeliões revelam exaustão do sistema. Quando os presos não são ouvidos, não têm canais de comunicação com as autoridades, com a Justiça ou com o sistema penitenciário, quando se esgotam as possibilidades de negociação, o último recurso para o qual eles apelam são essas manifestações extremadas de violência. Temos de aprender a reler isso como um pedido de socorro.
 
Por que a situação chegou a esse ponto por lá?
 
Não sei dizer sobre a situação específica de lá. O que se alega é a presença de facções criminosas. Mas mesmo a existência dessas facções mostra o abandono das prisões por parte das autoridades. As medidas que o Estado resolveu adotar agora, após reuniões emergenciais, são as medidas corriqueiras que já deveriam ter sido tomadas há muito tempo. É o abandono do sistema penitenciário que leva a essas manifestações de violência.
 
Um dos principais problemas é a superlotação. Por que o Brasil prende tanto?
 
É a lógica do encarceramento em massa de segmentos extremamente específicos. Esse perfil da população prisional no Brasil, de ser majoritariamente jovem, de baixa escolaridade, baixa qualificação profissional, afrodescendente e moradora de periferia mostra a seletividade do sistema de Justiça. Como o poder público não pode alcançar essas populações com as políticas públicas, com os serviços básicos de educação, saúde, moradia e tudo o mais, o que se faz é armar uma grande teia do sistema policial e do sistema de Justiça para pegá-los diante de qualquer infração.
 
Mas são pessoas que cometeram crimes, não?
 
De 550 mil presos no sistema penitenciário, se você somar o valor monetário das infrações, isso é insignificante. Não é nada diante de uma falcatrua que se faz na prefeitura, de um desvio de verba do metrô. Eles não estão presos porque roubaram da sociedade e deixaram pessoas mais pobres. São pessoas que, diante da condição de miséria que vivenciam, em algum tipo de infração eles iriam cair.
 
Investir em educação pode evitar casos como esse?
 
Não se pode esperar que a educação em prisões faça milagres. Não é responsabilidade da educação, por exemplo, melhorar os índices penitenciários, diminuir motins, mortes, rebeliões e violência. O que se quer da educação dentro da prisão é o que a educação já faz fora. Que ela qualifique as pessoas para competir em condições de igualdade pelas oportunidades que a sociedade oferece, para fazer seu projeto de vida. O que o preso vai fazer dessa educação, se vai deixar de ser criminoso ou não, isso não é papel da educação.
 
O acesso dos presos à educação avançou nos últimos anos?
 
Eu considero o sistema penitenciário a última grande fronteira da educação. Ele estava à margem da política educacional. Isso começou a ser construído nos últimos cinco anos e vem caminhando. O próprio entendimento de que educação é um direito do preso, e não um privilégio, já é um avanço. Durante muito tempo, mesmo que o preso quisesse estudar, não havia oportunidade. Hoje, quem quiser estudar tem essa oferta. Nem sempre ela é fácil de ser acessada e, quando é acessada, nem sempre é a mais adequada. Mas querendo estudar, algum meio há. Hoje, os diversos programas federais, como Pronatec, Prouni e Sisu são acessíveis ao preso.
 
A educação nas prisões é igual à educação regular?
 
Nas prisões, a abordagem mais adequada é, em vez de educação escolar, uma educação social. Ou seja, habilitar essas pessoas para voltar a viver de acordo com as regras que a sociedade aceita. São pessoas que só acreditam no poder da arma, da ameaça e da violência. Não tem conversa, a única coisa que sabem fazer é enfiar uma arma na cara dos outros. Se ele for para uma situação de escola, de fábrica, de escritório, de convivência social, ele se sente deslocado.
 
Quais dificuldades um egresso encontra para fazer seu projeto de vida fora da prisão?
 
Primeiro, é o longo tempo de permanência do sujeito no cárcere. No Brasil se fica em média oito anos na prisão. Também pesam os antecedentes criminais, a baixa escolaridade e a falta de qualificação profissional. Além disso, a maioria dos presos tem dificuldade, por exemplo, com moradia. E é um problema que não é abordado no âmbito das políticas de atendimento a presos, egressos, ou às famílias deles.
 
Existe uma resistência da sociedade quando se fala em política de auxílio a presos ou egressos?
 
As próprias autoridades não informam corretamente a população sobre o que significa ser preso no Brasil. Por exemplo, mais de 90% dos presos são desempregados ou ex-empregados. Ou seja, pessoas que saíram da sua terra natal, vieram para os grandes centros e aqui não conseguiram organizar sua vida. Para esses mais de 90%, moradia e emprego resolveriam o problema. No caso dos presos que trabalhavam, eles adquiriram direitos como qualquer trabalhador. Eles têm o auxílio desemprego, têm direito a fundo de garantia. Os formadores de opinião tratam muito mal essa questão, como se isso fosse um benefício, uma regalia dada ao preso. Não é. É direito dele.
 
Como você avalia a política prisional do estado de São Paulo?
 
Aqui, a lógica do PSDB nos últimos 16 anos tem sido o aparelhamento das polícias e da inteligência policial, o que fez com que o sistema penitenciário passasse de 43 prisões, há 15 anos, para 150 hoje. Constroem-se mais prisões no estado de São Paulo do que escolas e hospitais. Agora o estado já não está dando conta de construir prisões. Diante dessa dificuldade, vem o apelo muito pernicioso do mercado. Ou seja, prisão acaba virando um negócio. Além de ser um instrumento de controle da segurança pública por parte do estado.
 
Como assim?
 
A gente não tem dúvida de que o Estado, falando aí de poder executivo, legislativo e judiciário, eles usam deliberadamente o sistema de internação de adolescentes e o sistema de execução penal para aprimorar os próprios mecanismos de controle da sociedade. Diante de situações políticas desfavoráveis, nada melhor do que fomentar uns motins, umas rebeliões por aí, para o Estado aumentar o controle policial e mostrar a sua força.
 
Você acha que isso é deliberado?
 
Sim. É deliberado. Não é ocasional.
 
Você passou um período preso na década de 1980. O sistema prisional mudou de lá para cá?
 
A cultura penitenciária continua a mesma. Essa cultura possui um tripé de sustentação, que é composto em primeiro lugar pela excessiva tolerância ao uso da violência. A violência é utilizada para mediar todas as relações: entre presos e presos, presos e funcionários, funcionários e sistema, e assim por diante. Depois vem a excessiva tolerância à corrupção. E não estou falando da corrupção monetária, é a corrupção dos costumes e dos valores. O machismo, o uso da força, a hombridade, a prevalência do mais forte, esses valores ainda são predominantes dentro da prisão. Isso está na base da dificuldade que o egresso tem de depois voltar a se adaptar em sociedade.
 
E o terceiro ponto?
 
O terceiro é a prevalência da regra do prêmio e do castigo. Em vez de prevalecer a lógica do direito, dentro da prisão os direitos são negociados. Ou seja, se permite aos presos dominar outros presos, se permite dominar espaços e territórios dentro da prisão. Sempre em troca de algo. Isso faz com que, dentro da prisão, certos presos se sintam muito importantes, quando em liberdade eles não tinham importância nenhuma.
 
Você estudou direito na prisão e, depois de sair, tornou-se professor da USP. Como foi esse caminho?
 
O estudo veio pela necessidade de entender a circunstância de vida que se está no momento, entender a lógica de organização da sociedade, a estrutura e o funcionamento das leis e do sistema de justiça, para ver como lidar com esse emaranhado de complicações. Não é o estudo do direito, é o estudo da sociedade e da estrutura social para aprender a lidar com ela.
 
E como você procurou entender a sociedade?
 
Para isso não precisa ser um estudo escolar. A leitura ajuda, as conversas ajudam, tentar entender como
as pessoas pensam, como elas fundamentam suas decisões. Foi assim que eu fiz o meu caminho, mais fora da escola do que dentro. Eu só busquei a escola para ela certificar o aprendizado que eu tive ao longo da vida. E depois, quando me senti capacitado e qualificado para competir em condições de igualdade, eu resolvi disputar com as pessoas que não tinham antecedentes criminais.
 

Jardim Rosana: a PM no banco dos réus e um bairro com medo

Jardim Rosana: a PM no banco dos réus e um bairro com medo

Jornal Brasil de Fato

Reprodução/Revista Fórum
Começou o julgamento da chacina que vitimou o DJ Lah e outras seis pessoas. Caso ilustra a violência policial nas periferias
20/01/2014
Por Igor Carvalho,
Da Revista Fórum
Sexta-feira de muito calor em São Paulo. Nas conversas pelo bairro, ainda repercutiam as festas de final de ano. Era 4 de janeiro de 2013, por volta das 23h, no Jardim Rosana, zona sul. No número 75 da rua Reverendo Peixoto de Lima, praticamente na esquina, o dono de um bar estava ansioso para fechar o estabelecimento.
“Ah, fazia um tempo que bares estavam sendo atacados nas periferias, sempre de noite, sempre homens encapuzados, não era bom ficar até tarde ali”, lembra Rita de Cássia de Souza, moradora do Jardim Rosana.
Testemunhas relatam que, pouco antes das 23h, um Monza e uma moto tinham rondado no local, chamando a atenção dos frequentadores. Alguns, ressabiados, começaram a levantar a possibilidade de que os ataques pudessem se repetir.
“Policiais da Corregedoria tinham passado na mesma rua, uns dois dias antes, e avisaram que ‘tinham que ficar esperto’”, recorda Paulo Magrão, morador do Jardim Rosana há 40 anos e fundador da ONG Capão Cidadão.
Sem se preocupar com os alertas, Brunno Cassiano, de 17 anos, ficou no bar, contrariando a mãe, Rita de Cássia de Souza. “Ele estava jogando carteado com outros meninos.” Poucos metros para o lado, na porta do estabelecimento, estava Laércio de Souza Grimas, de 33 anos, conhecido com DJ Lah. No mesmo ambiente, mais para o fundo, próximo ao balcão, Ricardo Genuíno da Silva, de 41 anos.
“Eram fogos?”
Fátima da Silva tinha acabado de se deitar. Minutos antes, colocara a filha para dormir e estava repousando enquanto o marido não retornava. “Ele jogava futebol com os amigos toda sexta-feira. Naquele dia tinha me pegado no Terminal Capelinha, me deixou em casa e foi para o jogo”, afirmou a companheira de Ricardo Genuíno da Silva, recordando aquele 4 de janeiro.
Porém, não teve futebol naquela sexta-feira e, por volta das 22h, Ricardo ligou para Fátima avisando que estava indo para casa. Pouco depois das 23h, vieram os barulhos. Diversos e seguidos estampidos. “Levantei assustada, ainda não sabia o que era. Não sabia a diferença entre tiro e fogos de artifício. Quando saí na janela, meu vizinho estava na rua e eu perguntei: ‘Eram fogos?’. Ele disse que eram tiros”, lembra Fátima.
Ato contínuo, a companheira de Ricardo, que mora na rua de baixo da Reverendo Peixoto de Lima, correu para a frente da casa e viu que na esquina já havia uma grande concentração de pessoas. “Comecei a ligar para o Ricardo, mas o celular só dava caixa postal. Então, telefonei para os irmãos dele e começamos a procurar, nem imaginava que o Ricardo poderia estar no bar”, lembra Fátima.
Já eram 3 horas da madrugada do dia 5 de janeiro quando, depois de uma noite inteira entre saídas à rua e telefonemas, Fátima confirmou que o companheiro era um dos assassinados da chacina. “Um dos irmãos dele que me deu a notícia. Subi na rua e vi o carro do Ricardo parado em frente ao bar. Não tenho dúvida, foram policiais que mataram meu marido”, sentencia Fátima.
“Se ele não está nessa aqui ainda, dê graças a Deus”
Rita de Cássia de Souza tem o hábito de dormir tarde, estava bem desperta quando os barulhos de tiros apoderaram-se dos ouvidos e do imaginário dos moradores do Jardim Rosana. “Pensei um milhão de coisas, mas não imaginei que meu filho tinha morrido”, lamenta Rita.
Os 14 homens encapuzados desceram dos três carros e correram em direção ao bar gritando “polícia”. Brunno relutou em admitir que pudesse ser um episódio que resultaria em violência. “Ele não acreditava que isso poderia acontecer ali, com a gente, e quando gritaram que era da polícia ele deve ter pensado que era alguma operação”, lembra Rita. Depois de se anunciarem, os encapuzados dispararam, inúmeras vezes, em qualquer alvo que se movesse. Contrariando o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, até mesmo quem não reagiu morreu.
Quando Rita saiu de casa em direção ao bar não havia passado “nem dois minutos” e a rua já estava repleta de viaturas policiais, deixando a mãe de Brunno surpresa. “Não é suspeito? Não tive tempo nem de ligar para o Samu e tanta polícia chega assim, do nada? É óbvio que eles fizeram tudo combinado para limpar a sujeira.”
Dos dez policiais denunciados pelo Ministério Público, três seriam “responsáveis por fazer a limpeza”, de acordo com o promotor João Carlos Calsavara, responsável pelo caso. “Eles chegaram logo após a chacina e recolheram as cápsulas, porém, não o fizeram corretamente, pois várias foram encontradas na cena do crime.”
Logo que conseguiu se aproximar do bar, Rita viu um homem obeso no chão. Pensou que fosse o filho. Não era. Ao se afastar, foi interpelada por um policial. “Nessa hora, teve um PM maldito e nojento que me disse, enquanto eu procurava meu filho: ‘Se ele não está nessa aqui ainda, dê graças a Deus’. O ‘ainda’ dele queria dizer que fariam de novo?”
Brunno, conhecido como “Gordão”, tomou um tiro na perna enquanto tentava escapar, e foi então que o filho de Rita correu para uma viela que ladeia o bar e pulou o portão da casa de uma senhora idosa. Ao ver entrando em sua sala um adolescente baleado, sangrando e pedindo socorro, ela começa a gritar por ajuda e, mesmo sem querer, entregou “Gordão” aos seus algozes.
“Essa senhora, que não quer contar o que viu, infelizmente, diz que os policiais [encapuzados] entraram na casa dela e começaram a bater no meu filho, depois o levaram para a viatura”, conta a mãe de Brunno. Segundo ela, o adolescente entrou na viatura ferido por apenas um disparo, na perna, mas chegou no hospital com seis tiros e morto. “Executaram meu filho na viatura”, acusa.
Calsavara confirma que a versão é “possível”, mas, apesar de confirmar que Brunno chegou ao hospital com seis tiros, não se pode atestar que ele tenha saído do bar ferido por apenas um disparo na perna. “Tivemos que retirar do processo esse fato porque, se não comprovássemos a tese, poderíamos prejudicar a acusação.”
Recado dado
Quase dois meses antes do fatídico 4 de janeiro, mais precisamente no dia 12 de novembro de 2012, a TV Globo levou ao ar uma sequência de imagens que mostravam o servente de pedreiro Paulo Batista do Nascimento sendo executado por cinco policiais militares. A rua onde o flagrante foi feito é exatamente a Reverendo Peixoto de Lima, porém, a casa do servente ficava no número 92, no lado par do logradouro, quase de frente ao bar da chacina. É possível notar, no vídeo, que quem o gravou estava em uma posição na diagonal da casa de Nascimento e do alto de um sobrado, com tijolos à vista.
Uma mulher, que reside na rua mas não quis se identificar, afirma que o fluxo de policiais no local foi intenso nas semanas seguintes à divulgação do vídeo. “Passavam várias viaturas, às vezes paravam e ficavam olhando para cima e todo mundo aqui já sabia que eles estavam procurando quem tinha gravado o vídeo.”
Há uma avaliação comum entre os moradores do Jardim Rosana ouvidos pela reportagem. O que aconteceu no dia 4 de janeiro foi um recado dado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. “Não tenho dúvida de que eles vieram responsabilizar quem caguetou eles”, afirma Magrão. A tese é defendida, também, pela promotoria. “A divulgação do vídeo é, de acordo com o que foi investigado, o que motivou a ação dos policiais no Jardim Rosana”, analisa o promotor Calsavara.
À época, boatos espalhados pelo bairro atribuíam ao DJ Lah a responsabilidade pela gravação e divulgação do vídeo. Segundo uma moradora, escutada por Fórum mas que preferiu não se identificar, o músico já teria confirmado a versão em conversas com amigos.
Calsavara confirma que o DJ Lah reforçou o rumor. “Ao que consta, o Laércio estaria se vangloriando de que ele teria sido o autor da filmagem, mas apenas para se promover entre os vizinhos. Já concluímos que ele não fez a gravação.”
“Aqui não tem vagabundo”
Ironicamente, quando integrava o grupo Conexão do Morro, DJ Lah já falava sobre a violência policial nas periferias. Na letra da música “Click Clack Bang”, o músico parece narrar sua própria morte.
“De uniforme cinza assassinos são os homens
Pilantras como eles por aqui existem um monte
…Ratos e mais ratos circulando as favelas
Muito bem, saiam da mira dos tiras
São eles é quem forçam,
são eles quem atiram
Reze pra sobreviver”
Veja videoclipe da música Click Clack Bang:
No dia 4 de janeiro, “Click Clack Bang” se tornou mais real para Laércio de Souza Grimas, que nasceu e passou toda a vida no Jardim Rosana, onde se casou com a namorada da época de adolescência, Débora Cavalcante, e teve quatro filhos, todos criados na mesma casa onde cresceu. Débora se afastou do caso, mas demonstra ainda sofrer com a morte do companheiro e não atende a imprensa.
Nas poucas palavras que trocou com a reportagem deFórum, afirmou que se recuperou de uma depressão e que já conseguiu retornar ao trabalho, mas que nesse intervalo passou necessidades. A ausência do Estado foi lembrada por Débora, que afirma nunca ter sido procurada por ninguém do governo. “Eles mataram, eles nos tiraram nossos maridos e pais, então deveriam ao menos nos ajudar.”
Quando os encapuzados se precipitaram à entrada do bar, foi DJ Lah quem gritou: “Aqui não tem vagabundo”. O primeiro tiro foi na perna. Após virar de costas, já sentindo o efeito do primeiro disparo, o músico teria sido alvo de outros tiros.
Polícia pra quem?
A relação já partida entre as periferias e a Polícia Militar de São Paulo se rompe completamente quando chacinas ocorrem e agentes da corporação não são responsabilizados quando cometem atos criminosos. O que se vê, nas esquinas, durante as noites, é uma simbiose de medo e ódio.
“Não confio na polícia, tenho horror a eles. Quando vejo um policial, tenho um nojo enorme e um medo profundo”, diz, sem titubear, Fátima, companheira de Ricardo.
Magrão cita os confrontos de décadas passadas para justificar a relação com a PM hoje. “A cultura do medo aqui é foda. Nos anos 1980 era bandido contra bandido e morria gente pra caralho, mas a gente sabia onde e quando ia acontecer, era entre eles. Agora mudou, o crime não mata mais na quebrada, quem mata é a polícia, você nunca sabe de onde vai partir o tiro.”
Rita conta que policiais intimidam jovens no Jardim Rosana. “Em outubro do ano passado, enquadraram uns meninos aqui e disseram que se não pararem de reclamar [da chacina] vão voltar e matar sem capuz.” Magrão confirma a prática de amedrontamento policial, no bairro. “Escuto muito que existe uma intimidação da polícia, eles passam no local, ficam olhando e chegam a parar quando tem grupinhos. Se houver qualquer movimentação em grupo, eles cercam.”
“No Jardim Rosana, as pessoas não andam mais na rua depois das 21h, temos medo porque não sabemos o que pode acontecer com esses policiais aí na rua. Além da impunidade, parece que tem uns que participaram da chacina e que estão soltos”, alerta Magrão.
Dez indiciados
Apenas cinco policiais estão presos, os outros cinco, do total de dez indiciados, aguardam o julgamento em liberdade. Porém, para os moradores do Jardim Rosana, esse número é baixo, pois consideram que pelo menos 14 homens tenham entrado atirando no bar, assassinando sete pessoas e ferindo outras duas.
“Uns mataram, outros vigiaram e outros passaram, depois, limpando a cena do crime. Não descarto que mais pessoas estejam envolvidas e não tenham sido identificadas pela investigação”, atesta o promotor Calsavara. As identidades não apuradas e os policiais que aguardam o julgamento em liberdade são fatores que cooperam para a sensação de medo a que estão submetidos os moradores do Jardim Rosana. “Sempre nos perguntamos se eles vão voltar”, conta Fátima, que ainda mora na mesma casa, próxima ao bar.
Dos dez policiais indiciados apenas quatro foram acusados por participarem da chacina. Os demais policiais acusados na denúncia formulada pelo Ministério Público teriam dificultado o trabalho da perícia ao limpar a cena do crime e facilitado a ação dos atiradores. Um dos réus pode ter retirado ilegalmente uma espingarda do 37º Batalhão da Polícia Militar (BPM), no Capão Redondo, zona sul de São Paulo.
Os réus responderão pelos homicídios de Brunno de Cássio Cassiano Souza (17 anos), Carlos Alexandre Claudino da Silva (27 anos), Ricardo Genuíno da Silva (39 anos), João Batista Pereira de Almeida (34 anos), Edilson Lima Pereira Santos (27 anos), Almando Salgado dos Santos Júnior (41 anos) e Laércio de Souza Grimas (33 anos). Outras duas acusações recaem sobre os réus: duas tentativas de homicídio e alteração do local do crime. O processo está na 1º Vara do Tribunal de Júri, na Barra Funda, e corre em segredo de justiça. Duas audiências já foram realizadas e uma terceira está prevista para fevereiro.
 

Cleber Buzatto: “O Estado brasileiro não pode aprovar a PEC 215”

Cleber Buzatto: “O Estado brasileiro não pode aprovar a PEC 215”


Reprodução Cimi
"A bancada ruralista vai fazer de tudo para aprovar a PEC já no primeiro semestre, mas tudo vai depender também das mobilizações das tribos pelo Brasil"
20/01/2014
Por Bruno Pavan
O ano de 2013 foi novamente de muita luta para o CIMI (Conselho Indígena Missionário). Em diversos estados brasileiros tribos foram para o enfrentamento para garantir seus direitos e é esse ponto que Cleber Busatto, secretário Nacional da entidade, leva como positivo.
“Pela conjuntura do país, consideramos que 2013 foi de saldo positivo para as lutas indígenas. Os povos realizaram uma série de manifestações fazendo frente a um cenário adverso, batendo de frente com os ruralistas”, comemorou Busatto.
Diversas pautas estão na agenda de 2014, mas a atenção maior será para a PEC 215, que retira da União o poder de demarcar terras indígenas e passa essa responsabilidade para o Congresso, dominado pela bancada ruralista.
“Continuaremos mobilizados e construindo nossas relações políticas para que o Estado brasileiro não aprove esse retrocesso contra os povos indígenas. A bancada ruralista vai fazer de tudo para aprovar a PEC já no primeiro semestre para ter uma bandeira para as eleições. Existem também os prazos legais do Congresso, mas tudo vai depender também das mobilizações das tribos pelo Brasil”, explica.
Caso Tenharim
O caso dos Tenharims é evidenciado pelo secretário. Em 2013, depois da morte do cacique Ivan Tenharim e do sequestro de três homens, atribuído os índios, no dia 16 de dezembro, eles foram impedidos de entrarem na cidade de Humaitá (AM) e estão isolados na tribo recebendo ajuda da Funai.
 Cleber acredita que esses conflitos acontecem por conta do ataque dos políticos contra tribos pelo Brasil e vão continuar ocorrendo em 2014. “Esse processo de ataque vai seguir. É um discurso inflamatório, potencializa o preconceito contra os índios e as ações de violência física. Tudo isso serve para dar um ar de legitimidade ao ataque da bancada ruralista. O intuito é facilitar o acesso e a exploração das terras indígenas”, diz.
 

ATAQUE A INTELIGENCIA HUMANA,

ATAQUE A INTELIGENCIA HUMANA,  





Vale a pena ler ....abs




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Sobre o BBB 13 ( Por Luis Fernando Veríssimo ) Que me perdoem os ávidos telespectadores do Big Brother Brasil (BBB), produzido e organizado pela nossa distinta Rede Globo, mas conseguimos chegar ao fundo do poço. A nova edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira. Chega a ser difícil encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado à nossa modesta inteligência. Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB é a pura e suprema banalização do sexo. Impossível assistir ver este programa ao lado dos filhos. Gays, lésbicas, heteros… todos na mesma casa, a casa dos “heróis”, como são chamados por Pedro Bial. Não tenho nada contra gays, acho que cada um faz da vida o que quer, mas sou contra safadeza ao vivo na TV, seja entre homossexuais ou heterossexuais. O BBB é a realidade em busca do IBOPE. Veja como Pedro Bial tratou os participantes do BBB. Ele prometeu um “zoológico humano divertido”. Não sei se será divertido, mas parece bem variado na sua mistura de clichês e figuras típicas. Pergunto-me, por exemplo, como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial que, faça-se justiça, cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a ser apresentador de um programa desse nível. Em um e-mail que recebi há pouco tempo, Bial escreve maravilhosamente bem sobre a perda do humorista Bussunda referindo-se à pena de se morrer tão cedo. Eu gostaria de perguntar se ele não pensa que esse programa é a morte da cultura, de valores e princípios, da moral, da ética e da dignidade. Outro dia, durante o intervalo de uma programação da Globo, um outro repórter acéfalo do BBB disse que, para ganhar o prêmio de um milhão e meio de reais, um Big Brother tem um caminho árduo pela frente, chamando-os de heróis. Caminho árduo? Heróis? São esses nossos exemplos de heróis? Caminho árduo para mim é aquele percorrido por milhões de brasileiros, profissionais da saúde, professores da rede pública (aliás, todos os professores) , carteiros, lixeiros e tantos outros trabalhadores incansáveis que, diariamente, passam horas exercendo suas funções com dedicação, competência e amor e quase sempre são mal remunerados. Heróis são milhares de brasileiros que sequer tem um prato de comida por dia e um colchão decente para dormir, e conseguem sobreviver a isso todo dia. Heróis são crianças e adultos que lutam contra doenças complicadíssimas porque não tiveram chance de ter uma vida mais saudável e digna. Heróis são inúmeras pessoas, entidades sociais e beneficentes, Ongs, voluntários, igrejas e hospitais que se dedicam ao cuidado de carentes, doentes e necessitados (vamos lembrar de nossa eterna heroína Zilda Arns). Heróis são aqueles que, apesar de ganharem um salário mínimo, pagam suas contas, restando apenas dezesseis reais para alimentação, como mostrado em outra reportagem apresentada meses atrás pela própria Rede Globo. O Big Brother Brasil não é um programa cultural, nem educativo, não acrescenta informações e conhecimentos intelectuais aos telespectadores, nem aos participantes, e não há qualquer outro estímulo como, por exemplo, o incentivo ao esporte, à música, à criatividade ou ao ensino de conceitos como valor, ética, trabalho e moral. São apenas pessoas que se prestam a comer, beber, tomar sol, fofocar, dormir e agir estupidamente para que, ao final do programa, o “escolhido” receba um milhão e meio de reais. E ai vem algum psicólogo de vanguarda e me diz que o BBB ajuda a “entender o comportamento humano”. Ah, tenha dó!!! Veja o que está por de tra$$$$$$$$$ $$$$$$$ do BBB: José Neumani da Rádio Jovem Pan, fez um cálculo de que se vinte e nove milhões de pessoas ligarem a cada paredão, com o custo da ligação a trinta centavos, a Rede Globo e a Telefônica arrecadam oito milhões e setecentos mil reais. Eu vou repetir: oito milhões e setecentos mil reais a cada paredão. Já imaginaram quanto poderia ser feito com essa quantia se fosse dedicada a programas de inclusão social, moradia, alimentação, ensino e saúde de muitos brasileiros? (Poderia ser feito mais de 520 casas populares; ou comprar mais de 5.000 computadores). Essas palavras não são de revolta ou protesto, mas de vergonha e indignação, por ver tamanha aberração ter milhões de telespectadores. Em vez de assistir ao BBB, que tal ler um livro, um poema de Mário Quintana ou de Neruda ou qualquer outra coisa…, ir ao cinema…. , estudar… , ouvir boa música…, cuidar das flores e jardins… , telefonar para um amigo… ,·visitar os avós… , pescar…, brincar com as crianças… , namorar… ou simplesmente dormir. Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro e destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construída nossa sociedade.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

O 2,4-D e a toxidade dos agrotóxico

O 2,4-D e a toxidade dos agrotóxicos

Jornal Brasil de Fato

 


Reprodução/Envolverde
"O modelo de produção agrícola baseado na 'tecnologia' química e de transgênicos tem que ser revisto", afirma em entrevista especial, a toxicóloga Karen Friedrich
15/01/2014
Do IHU-Online
 
 
Com a resistência gradual das pragas e plantas daninhas aos agrotóxicos tradicionais, a indústria dos transgênicos precisou buscar alternativas mais eficientes para a manutenção de seus resultados. Uma das apostas do mercado é liberar a comercialização de sementes resistentes ao herbicida 2,4-D. A substância já tem o seu uso regulado no País, mas, ainda assim, dúvidas quanto à sua segurança toxicológica levaram uma série de especialistas a apontar a exigência da revisão de sua licença. Neste contexto, a toxicóloga Karen Friedrich alerta: “A liberação da semente legitimaria uma forma de aumentar a aplicação de uma substância tóxica, cujo uso deveria ser diminuído, não incentivado”.
 
A toxicóloga Karen Friedrich. Foto: Reprodução 
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Friedrich alerta para os perigos da substância, que é conhecida como um dos componentes do Agente Laranja. O composto foi utilizado pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã como desfolhante, e sua toxidade gerou milhares de relatos sobre má-formação congênita, câncer e problemas neurológicos. Ainda assim, desde 1945 a substância teve sua patente requerida e utilizada para a agricultura. A toxicóloga da Fundação Oswaldo Cruz ressalta que o uso conjunto do 2,4-D com o 2,4,5-T é que forma o Agente Laranja, mas isoladas as substâncias também geram graves problemas.
“Há vários estudos mostrando que o 2,4-D está associado a alguns tipos de câncer, como aos relacionados a alguns órgãos sexuais e linfomas”, relata ela. “Há estudos indicando alterações de hormônios sexuais e das funções da tireoide”, sem mencionar a produção de dioxina como subproduto – uma substância extremamente tóxica. Para a toxicóloga, as empresas de agrotóxicos apresentam-se como a “solução de todos os problemas” do trabalhador rural e da produção de alimentos no mundo, mas este discurso é enviesado devido aos interesses comerciais envolvidos. “Temos que fazer essa discussão com base científica. Tirar essa discussão ideológica da produção e do desenvolvimento e ver o que é bom para o meio ambiente, para a saúde, e que ao mesmo tempo sustente economicamente o país.”
 
 
Karen Friedrich possui graduação em Biomedicina pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Mestrado e Doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é servidora pública doInstituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) da Fundação Oswaldo Cruz e professora assistente da Universidade Federal do Estado do Rio.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Muito se comenta sobre o alto nível de toxidade do herbicida 2,4-D. O que pode dizer sobre este composto? Qual a situação do 2,4-D no Brasil?
Karen Friedrich – O 2,4-D é um herbicida, como você falou, e tem seu uso liberado no Brasil. No entanto, segundo os critérios da legislação brasileira, ele já poderia ter um indicativo de proibição. Ele é usado em outros países também, mas a legislação desses países é diferente da nossa. O único problema é que fazer a revisão de um agrotóxico no país é um processo complicado, no sentido que a ANVISA ou o Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, propõem essa revisão de acordo com os efeitos que as substâncias podem causar sobre a saúde humana ou sobre o meio ambiente. Mais do que isso, quando as entidades tentam iniciar o processo, incorre a oposição de uma série de processos e mandados oficiais tentando impedir essas revisões de registros. A revisão de registro não é imediata, não é um processo muito simples, mas os estudos científicos publicados sobre a toxidade do 2,4-D indicam que ele apresenta vários efeitos sobre a saúde. Teria, por exemplo, efeito sobre o sistema reprodutivo, sobre o sistema hormonal...
IHU On-Line – O 2,4-D é parte do Agente Laranja usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, mas é a combinação de elementos que torna o agente perigoso. Quais riscos ele sozinho pode trazer?
Karen Friedrich - Depende do tipo de estudo conduzido. Há pesquisas indicando alterações de hormônios sexuais e das funções da tireoide - glândula importante para uma série de funções do nosso corpo. Além disso, geralmente há vários estudos mostrando que o 2,4-D está associado a alguns tipos de câncer, como aos relacionados aos órgãos sexuais e linfomas. Esses estudos de cânceres já foram evidenciados não só em animais de laboratórios, como também em seres humanos expostos ao 2,4-D. No caso do Agente Laranja, ele é um dos componentes junto ao2,4,5-T. Os dois juntos aumentavam muito mais a chance dessas contaminações toxicológicas, tanto que o seu uso gerou um desastre muito grande, com milhares de pessoas atingidas. Claro que ele está presente nos alimentos em concentrações muito menores, mas há outra característica que eu também destaco: o 2,4-D causa mutação no DNA.
IHU On-Line – Ela pode ser transmitida para gerações?
Karen Friedrich - A mutação tanto pode ser em uma célula somática, que é a que leva ao câncer, ou em células germinativas, que é a que vai se juntar com a célula do sexo oposto para gerar um embrião. Caso a mutação ocorra nessa última, pode levar a má-formação fetal, abortos instantâneos... Outro detalhe é que a produção do 2,4-D gera um contaminante e isso é inevitável para a própria indústria química. Ela pode até diminuir esse subproduto por alguns processos, mas não consegue evitar a presença desse contaminante (dioxina) no produto (herbicida).
IHU On-Line – Quais problemas são causados pela dioxina?
Karen Friedrich - Ela é extremamente tóxica. Causa imunossupressão, ou seja, diminui a resposta do sistema de defesa do organismo. Esse sistema de defesa é responsável não só pela defesa contra patógenos, mas para a própria vigilância do câncer, causa também efeitos de intoxicações agudas graves e pode causar também câncer, alterações reprodutivas e alterações hormonais. Uma das substâncias mais tóxicas sintetizadas pelo homem é a dioxina. Então o que acontece é que mesmo saindo da fábrica com aquele resíduo de dioxina que está dentro de um limite legal, a partir do momento em que sai da fábrica ele pode gerar espontaneamente dioxina no próprio produto. Temos uma escassez de laboratórios oficiais que monitorem dioxina não só no produto, mas depois, nos alimentos. Então, por esse lado, pela própria característica dela, do 2,4-D, e pela característica do seu principal contaminante, é que a dioxina é um produto que a gente deveria banir do país.
Esses efeitos seriam um indicativo de proibição no país segundo a Lei 7.802 de 1989, pois a dúvida sobre sua segurança levaria ao que conhecemos como “Princípio da Precaução”. Muitas pessoas criticam a legislação, declarando que em outros países o 2,4-D é liberado e que por isso também deveria ser permitido aqui dentro. Isso não é verdade, já que outros países têm outras legislações que não inserem esses efeitos no seu critério de proibição. Nós inserimos e temos que obedecer à legislação brasileira.
IHU On-Line - Então podemos dizer que a lei brasileira é mais rígida nesse sentido?
Karen Friedrich - Ela é mais rígida no sentido em que propõe que caso alguma substância cause determinados efeitos, seu uso deve ser proibido. É o caso de alterações no sistema reprodutivo, alterações hormonais, mutação, carcinogênese (formação de câncer) e má-formação fetal – efeito ao qual o 2,4-D também tem sido associado. O que foi objeto da discussão da audiência pública foi a liberação de uma semente transgênica resistente ao 2,4-D. Então quer dizer, o que isso significa? Significa que por conta dessa semente existe a expectativa de se aumentar muito o consumo do 2,4-D. Nesse sentido, a liberação da semente legitimaria uma forma de aumentar a aplicação de uma substância tóxica, cujo uso deveria ser diminuído, não incentivado.
Nós sabemos que o modelo de produção agrícola tem que ser revisto. Óbvio que nós somos um dos grandes produtores de soja do mundo e de outras grandes commodities, mas temos que rever e pesar o que é importante. O que nós queremos? Manter a produtividade a todo custo? Ou queremos preservar a saúde do trabalhador e do meio ambiente?
IHU On-Line - Se temos tantos estudos que mostram as complicações dele, o que falta então para ser proibido?
Karen Friedrich - Acredito que falta um pouco de iniciativa da Anvisa de se disponibilizar a fazer essa reavaliação, de forma que várias instituições de pesquisa possam auxiliá-la nisso. Sabemos que diversos órgãos sofrem com falhas estruturais, escassez de recursos humanos e de recursos financeiros. Eu não digo nem que seja culpa da Anvisanão querer fazer isso, mas que o próprio governo deveria repensar o fomento para a produção agrícola e as áreas de desenvolvimento, ao mesmo tempo investindo nos órgãos que vão dar suporte e segurança à população a partir do que é produzido. Se pensarmos em todos os produtos que ela avalia que não é só agrotóxico, como medicamentos, alimentos e mesmo as regiões de fronteira, veremos que é uma grande diversidade de produtos que se deve dar conta.
Então o que falta? Acho que falta um pouco desse investimento e a Anvisa talvez procurar buscar parceiros como ela já fez em outros momentos, para auxiliá-la na revisão desse registro. Isso é um ponto fundamental.
IHU On-Line – O uso da semente com 2,4-D teria sido testado apenas em dois municípios brasileiros, Indianápolis (MG) e Mogi Mirim (SP). É suficiente para uma avaliação adequada dos riscos envolvidos? Qual seria um procedimento adequado?
Karen Friedrich - O ideal é que você tenha essa testagem nos solos e nas diferentes características ambientais do país. Se o poder econômico e político tiver mais força e ela vier a ser liberada, isso vai ser um grande problema. E, além disso, se ela vier a ser liberada, é evidente que será usada no país inteiro. Então dois Estados ainda são muito limitados para a gente dizer a eficácia dessa semente. E o que a gente tem visto também com outras sementes transgênicas é que, ao longo do tempo, assim que ela é lançada, em geral só tem um pico de produção, mas depois essa produção vai diminuindo. Porque os próprios insetos se tornam resistentes a ela, você tem que usar cada vez mais agrotóxicos e esses agrotóxicos diminuem os predadores naturais e os predadores naturais daquelas pragas, então você tem que usar cada vez mais agrotóxicos. Isso na verdade é um ciclo que cada vez mais incentiva a produção da toxina.
Outra coisa que temos que observar é que quem está trazendo essa informação para o agricultor é a indústria. Então esse agricultor às vezes acredita que o transgênico e o agrotóxico são a melhor solução para ele, mas ele está ouvindo uma indústria que tem conflito de interesse no tema. Ela quer promover o seu produto. Muitos questionam essa briga da agricultura com a saúde, mas temos que fazer essa discussão com base científica. Tirar essa discussão ideológica da produção e do desenvolvimento e ver o que é bom para o meio ambiente, para a saúde, e que ao mesmo tempo sustente economicamente o país.
IHU On-Line – A introdução de sementes resistentes ao 2,4-D está sendo proposta devido à resistência das pragas ao herbicida Glifosato. Esta não seria uma medida paliativa que levará novamente à criação de superpragas? Qual seria uma solução possível?
Karen Friedrich - A semente transgênica do 2,4-D não substitui, ele é usado para outro tipo de folha. Na verdade os agricultores vão usar o glifosato, o 2,4-D e as suas respectivas sementes transgênicas, o que é muito pior. Você está associando dois agrotóxicos com efeito sobre a saúde e, quando estão em conjunto, o seu efeito pode ser muito maior. Na verdade eu penso que é uma discussão mais ampla que tem a ver com o modelo de produção. Nós temos propriedades que produzem milhares de hectares com uma única cultura aplicando um monte de substâncias químicas, então você não tem um ambiente equilibrado que pudesse ter predadores naturais para aquelas pragas. Não estou dizendo que as monoculturas devem acabar, não é isso, mas existem sistemas que podem ser intercalados, como a produção de florestas para produzir um sistema minimamente equilibrado, que possa ter predadores naturais para aquelas pragas, fazendo o uso de agrotóxicos ser, com o tempo, diminuído.
IHU On-Line – Sabemos que nem todo produtor rural tem o perfil para a produção orgânica, que exige uma dedicação muito maior do que a da produção convencional. A aplicação de agrotóxicos na lavoura é fundamental para a produção de alimentos?
Karen Friedrich - Não, não é. Existem vários estudos, locais e produtores mostrando que é possível produzir alimento sem agrotóxico. É preciso diferenciar o que é alimento e o que é commodity. Soja, algodão, cana e milho, da maneira como estamos produzindo, não são alimentos, são commodities. São alimentos pontuais que em geral servem para a produção de ração de animais, mas não vivemos apenas dessa fonte proteica, a nossa alimentação tem que ser equilibrada com outros alimentos, com outros nutrientes. As grandes monoculturas produzem para exportar, não para gerar alimento para a sociedade. A despeito dessa grande produção agrícola, estamos onerando a saúde humana, a saúde do trabalhador, a saúde do meio ambiente, e é essa a grande questão.
O que temos visto também é que o uso de agrotóxicos causa uma toxidade nos próprios animais de criação e de corte, como algumas aves, o porco e o boi. Essa toxidade leva à diminuição da reprodução desses animais, o que leva o produtor a inocular hormônios nos seus animais para garantir a produção deles. Mas ele não pensa que a consequência disso pode ser do próprio agrotóxico que foi utilizado no pasto, ou numa propriedade vizinha, ou passou por avião, ou que está contaminando o lençol freático de uma região um pouco mais distante mas que é consumido pelo gado. Na verdade, o agrotóxico está levando a uma insustentabilidade da produção local e é isso que não está sendo colocado.
Nós não devemos escutar a indústria de agrotóxicos, pois ela quer vender o seu produto. Algumas instituições de pesquisas sérias têm produzido estudos de modo a dar sustentabilidade para a produção orgânica, mas o próprio governo também precisa agir. Nós vemos números estratosféricos de investimento na grande monocultura. Caso parte desses recursos fossem voltados para a produção orgânica e agroecológica, com certeza a produtividade desses setores iria se inverter. É como você falou, é difícil, não é de hoje para amanhã que a pessoa vai produzir de maneira agroecológica, e é preciso também um investimento financeiro, porque de pronto muitos produtores orgânicos estão ameaçados pela contaminação que vem de uma grande propriedade vizinha em que passa o avião, e vem pelo vento, pelo ar, pela água. O governo e a sociedade têm que começar a questionar, a dar apoio e exigir esse investimento maior nesse tipo de produção. A situação já foi pior, hoje temos certo investimento, mas ainda está muito aquém do que é investido nas grandes monoculturas.
IHU On-Line – Como você encara a relação entre a produção de organismos geneticamente modificados e os agrotóxicos?
Karen Friedrich - Não é uma coincidência que as grandes empresas produtoras das sementes transgênicas são as principais produtoras daquele agrotóxico ao qual a semente é resistente. A indústria vende dois produtos como sendo a solução dos problemas do agricultor, sendo que ele tem interesse na sua comercialização. É algo a se perguntar e nos leva a questionar todo o modelo de produção e pensar em alternativas para esse modelo. É claro que isso não vai interessar à indústria, mas temos que pensar também em quem o governo quer proteger. É uma questão até de soberania nacional.
Por outro lado, do ponto de vista da saúde, alguns estudos já demonstram que o uso combinado do agrotóxico com a semente pode aumentar a toxidade do produto. Isso por si só já demandaria mais investimento em estudo e pesquisa, de pesquisadores independentes da indústria, sem conflito de interesses. É importante que mais estudos fortaleçam essas hipóteses, mas na nossa Lei Ambiental temos o chamado princípio da precaução: uma vez existindo incerteza sobre a segurança de um produto, ele deve ser suspenso até que se comprove a sua segurança. Logo, mesmo que poucos estudos mostrem esse efeito combinado, por si só isso já deveria levar à suspenção do registro de agrotóxico.
Uso conjunto de agrotóxicos
Outra coisa que temos que pensar é que em determinada cultura são usados vários agrotóxicos. Para algodão, soja, são centenas de agrotóxicos permitidos para essas culturas. Claro que não se espera que o agricultor use todos os que são permitidos, mas se ele usar algumas dezenas, uma dezena, quatro, cinco variedades, o uso combinado pode prejudicar a saúde muito mais do que foi no laboratório.
Esta é uma deficiência da legislação não só no Brasil como em alguns outros países. Quando a indústria pleiteia o registro de um produto, ela apresenta vários estudos dos efeitos tóxicos daquela substância, só que conduzidos apenas tendo em vista a substância que está sendo pleiteada. Não se administra, no animal de laboratório, aquela substância mais outra que já está registrada para aquela cultura. Dito isso, nós não temos ideia do que resultaria do uso combinado dos agrotóxicos.
Do ponto de vista toxicológico do que se tem de alguns estudos científicos, já é demonstrado que algumas combinações são extremamente tóxicas. Um exemplo clássico é o dos organofosforados, uma classe química de agrotóxicos que causam a inibição de uma enzima chamada acetilcolinesterase. Então esse tipo de agrotóxico usado unicamente inibe uma quantidade X que poderia manter o indivíduo nas suas condições normais. Só que se ele usa dois, três, quatro organofosforados, esses efeitos vão ser somados. A inibição que era X passa a ser 3X, 4X, e acaba ultrapassando aquele limite em que se consideraria o efeito tolerável, chegando num ponto incompatível com a qualidade de vida da pessoa. Existem outros exemplos de agrotóxicos que podem causar alterações hormonais em quantidade muito maior do que a substância isolada.
É como no caso dos medicamentos; sabemos que há medicamentos que podemos usar em conjunto, e outros que são incompatíveis porque alteram o efeito esperado. Ou diminuem a própria eficácia ou aumentam e muito a sua toxidade. Do ponto de vista toxicológico, nós vemos que os efeitos do agrotóxico são realmente muito agressivos, e gradativamente devemos substituir esse modelo de produção baseado nessa “tecnologia” química e de transgênicos por modelos alternativos de base agroecológica.



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